A medicalização da infância (e da vida) é um evento que se instaura em nossa cultura desde o fim do século XIX em modo crescente, até nossos dias. Diagnósticos que tratam das conseqüências da morte de Deus (F. Nietzsche), do desencantamento do mundo (M. Weber) e da dissolução da comunidade em detrimento da sociedade (o primado do indivíduo sobre o coletivo, descrito por F. Tönnies) versam sobre o deslocamento dos discursos de verdade do místico para o científico.
A terceirização das responsabilidades é uma consequência lógica das descrições acima. A inserção de mais e mais grupos na dinâmica de venda de suas forças de trabalho, de produtividade e foco em subsistência, capacidade de consumo, realização profissional, competição, destaque, reconhecimento demandam uma racionalização das energias de cada indivíduo para a conquista de suas metas, ou para garantir sua existência econômica. A alocação desses recursos reduz ou impede que outras intuições afetivas fluam em equilíbrio, como a criação dos próprios filhos. O que antes era uma tarefa coletiva, passada como ofício de antepassado para sucedâneo, e em que as diferenças entre membros desse coletivo eram tratadas como partes de um todo, passou a ser gerenciado parcialmente pelas instituições (escolas e assemelhados) e parcialmente pela pequena família (pais), com ônus majoritário sobre a mãe.
O massacre sofrido pela mãe (sem surpresas, sobre a mulher) vem desde as expectativas sobre sua fertilidade, gravidez, gestação, parto, puerpério, e se desenrolam por toda a criação da criança. A esse massacre, acresce-se o fato de que essa mãe não dispõe mais dos recursos coletivos de outrora, cabendo a ela não só as principais responsabilidades do desenvolvimento afetivo de seus filhos, como também as culpas associadas ao não cumprimento dessas expectativas. O colapso do modelo anterior ensejou a produção de novas possibilidades, de novos pactos que colaboram entre si em tendência de harmonia:
A – a patologização dos afetos, via diagnósticos psiquiátricos, mas não somente, como também tudo o que está metonimicamente associado.
B – a terceirização das responsabilidades, fundada em diagnósticos e na fé em fármacos.
C – a ampliação de novos mercados, tanto para seguradoras de saúde, quanto para a indústria farmacêutica.
Sobre A, na divulgação do DSM-5 (Diagnostic and Statistical Manual of Mental Disorders) pode-se dizer que o processo de patologização e reificação da vida segue seu curso sem surpresas. Dentre tantas alterações ao DSM-4 e novidades nos periódicos científicos, são exemplos(1) a repaginação da Ritalina (uso em transtornos alimentares, uso em grávidas, inclusão de idosos e efeitos benéficos em doentes de Alzheimer); reposição hormonal masculina; tratamento de usuários de álcool e outras drogas como doentes mentais que precisam de vacinas; patologização da insônia; venda de doenças imunológicas crônicas (a dorzinha nas costas passa a ser espondite anquilosante); a reciclagem do Neurontin (indicado para neuralgia pós-hepértica e agora útil para transtorno bipolar, enxaquecas e para abstinência de álcool e drogas ilícitas).
Metonimicamente associados são todas as intervenções cujas origens fundam-se em afetos, e cujos propósitos buscam gerenciá-los. Na infância, há uma explosão de diagnósticos de TDAH, TDO, autismos, Asperger, depressões, questões de identidade de gênero, mas também os refluxos, os gases abdominais, as intolerâncias alimentares, as insônias, as otites; mais adiante, as orelhas de abano, fimoses, as carnes esponjosas, desvios de septos, nariz adunco, silicones e botox, intervenções que perpassam a infância e a adolescência.
Sobre B, a tercerização das responsabilidades funda-se numa repaginação positivista nomeada emblematicamente como uma nova medicina baseada em evidências. Por um lado, transferir as responsabilidades para “defeitos de fabricação” (heranças genéticas ou males congênitos a serem combatidos) em que médicos assumem as prescrições de fármacos e intervenções para problemas antes ordinários; médicos que por sua vez lastreiam suas responsabilidades em compostos químicos e cirurgias aceitas e embasadas juridicamente, garantidas por laboratórios e agências de saúde; em suma, diluições das responsabilidades para a frustração das expectativas na criação das crianças, e na condução da vida.
Sobre C, os formuladores dos diagnósticos e intervenções de referência atendem as demandas tanto da indústria de medicamentos e tudo o que movimenta essa cadeia de produção; atendem as seguradoras de saúde que produzem apólices com mais e mais coberturas personalizadas; ao mesmo tempo em que essas apólices garantem tratamento para as famílias sem recursos afetivos para criar seus filhos; testemunha-se o engendramento de um novo pacto colaborativo em que não há vítimas ou vilões, mas uma convergência de interesses.
A área psi usufrui completamente desses engendramentos e é a razão de sua existência tanto como ciência como mercado. Há muito a psicologia atua em colaboração com a medicina, em uma relação de suserania e vassalagem: para tanto, basta examinarmos sua terminologia fundada em tropos médicos, identificarmos o que os engendra, e os engendramentos que derivam. Termos como “clínica”, “terapia”, “saúde mental”, “cura”, “diagnóstico”, “doença” etc, e também discursos como o da psicanálise, ou sua variante lacaniana, posto que ambas têm, como base, lugares de verdade provenientes da medicina, às vezes camufladas em alguma corrente da linguística, na promoção do dualismo mente/corpo. Que as práticas psi derivam seus conceitos da medicina, muitos profissionais da área dirão “disso eu sei!”, mas a pergunta é se estão derivando as consequências lógicas desse saber: quando uma área do conhecimento se utiliza de um ou outro tropo de outra área distante (como por exemplo “diagnóstico da falha do aparelho eletrônico”) isso não implica necessariamente que essa área opere como extensão ou sob a mesma perspectiva, propósito e estratégia da área em que origina o conceito; entretanto, quando uma área inteira deriva seus tropos e conceitos de outra, aí sim, podemos dizer que essa área é linha auxiliar e complementar da área em que os conceitos originam-se.
Quando o conhecimento, a reflexão, o saber se exploram sob novos e diferentes ângulos, podem porventura demandar o emprego de novos termos e nomeações. Essas palavras ou acepções novas são chamadas de neologismos. Um dos meios para a criação de neologismos é através de tropos. Τρόπος, em grego, significa direção; ou seja, entende-se que um tropo é uma mudança de direção e significado de uma palavra. Cabe portanto examinar pormenorizadamente a eleição de alguns tropos e as implicações de seu uso.
Assim, passemos a um exame pormenorizado de alguns termos da área psi, e também ao estabelecimento de uma terminologia empregada ao longo deste artigo. Quando necessário, opto por usar “consultório” em vez de “setting”, quando me refiro ao espaço isolado que separa o interno do externo, garantidor da privacidade na relação entre analista e analisado, posto que “setting” é um termo de uso corriqueiro e que, em português, serviria somente para dar uma acepção técnica, de origem estrangeira, ao conceito.
Adoto aqui o termo “análise” para a prática que envolve o analista e o analisado (ambos esses termos derivados de “análise”), que deriva do grego antigo ἀνάλυσις. Essa palavra é uma composição da preposição/prefixo espacial ἀνά que significa “ao largo de”, “em volta de”, “em torno de”, e a palavra λύσις que significa “desatar”, “desamarrar” com todas as suas possibilidades trópicas: libertar-se de algo que prende ou ata, esvaziar, divorciar, suavizar etc, assim como significados posteriores como “decompor em partes”, ou como usou Aristóteles na lógica, “resolver”.
Trauma é tropo da medicina, trazido do grego por volta do século XVIII, e de uso corrente na ortopedia. Τραῦμα significa “ferimento” e passou a ser difundido na área psi no fim do século XIX
Terapia, θεραπεία, em grego antigo significa tratamento, atendimento (como compromisso, pago), “tratamento cirúrgico ou médico ou cura” e é um termo eminentemente médico, portanto, outro tropo.
Sintoma, σύμπτωμα, significa, em grego, ocorrência, contratempo, infortúnio. Nos tempos do latim tardio, passou a ser um tropo médico, e depois foi transferido para a terminologia psi.
Clínica, deriva do grego antigo κλίνειν que significa inclinar ou reclinar. Assim, κλίνη é um sofá ou cama e κλινικός é um médico que visita seus pacientes em suas camas.
Neurose e psicose são tropos compostos a partir do sufixo grego -ωσις, que significa estado ou condição doente. Ψυχή (psiche) significa “vida”, também traduzido para o latim como anima (alma); νεῦρον (neuron) é “nervo”. Portanto, neurose é doente dos nervos, e psicose é doente da alma.
Cura, alta, saúde mental, doença e tantos outros similares são termos de uso corrente nos idiomas e na língua portuguesa auto-explanatórios, e que evidenciam a difusão decorrente do emprego de tropos gregos com pretensões técnicas, isto é, de língua privada. A idéia de uma língua privada, nesses casos, é para estrategicamente obscurecer a acepção que se quer dar. O obscurantismo é demonstrável pela multidão de paradoxos que povoam mesmo aqueles que declaram combater a biopolítica no campo da saúde mental (sic), posto que não renunciam nem aos termos, nem aos engendramentos, permanecendo como linha auxiliar dos discursos da medicina e da medicalização, discursos contra os quais alguns dizem paradoxalmente combater. No próximo artigo, trataremos com mais profundidade a infância à luz das considerações acima.
Notas de Rodapé
Desha 30:09:2021
(1) Retenho a análise de Martha Rosenberg, publicada no site Alternet, e reproduzido em Outras Palavras: http:// www.outraspalavras.net/2013/04/27/quem-resgatara-a-industria-farmaceutica/
Quem escreve

Myrna Coelho
Profa. Dra. Myrna Coelho, psicóloga clínica, cofundadora do curso “Fenomenologia Crítica: ações clínicas, educacionais e institucionais”, do Instituto Sedes Sapientiae. Decidiu recomeçar a vida do outro lado do oceano, onde segue atendendo seus pacientes e dando supervisão on-line. Atualmente pesquisa psicoterapia on-line.