Nos últimos anos, desde que toda a minha atenção profissional se voltou para a escola, tenho sido indagada por diferentes interlocutores sobre um possível abandono de minha profissão como psicóloga. É sabida a existência de uma atuação vinculada à psicologia da educação, no entanto, essa não se faz rapidamente compreensível. Apesar de muitos caminhos terem sido desvelados e tecidos ao longo dos anos, o fazer da psicologia ainda é fortemente vinculado à clínica e tudo aquilo que se distancia desse lugar se torna menos pertencente ao psicólogo.

Não pretendo aqui uma discussão sobre a nomeação da função ou cargo
que o psicólogo deve ocupar na escola, mas propor uma reflexão sobre o modo de atuação e intervenção nesse espaço, partindo de uma historização dos caminhos da psicologia enquanto participante do cenário educacional.
É possível que a temática soe ultrapassada, tendo em vista que o debate
sobre o papel dos psicólogos ocorre desde o início dos anos 40, já com a
psicologia escolar consolidada, quando um grande número de psicólogos
passou a trabalhar em pesquisa ou em áreas da psicologia aplicada. No
entanto, essa é uma discussão que se reapresenta com novos paradigmas e
para que seja possível compreendê-la, traçaremos brevemente seu percurso no Brasil.
A psicologia escolar no Brasil surge no final do século XIX, com forte influência do que vinha sendo vivenciado nos Estados Unidos e na França. Campos e Jucá (2006) apontam que “(a psicologia escolar no Brasil) se configurou menos como ciência experimental, voltada para a pesquisa básica, produção de conhecimentos, e mais como um campo de aplicação na medicina e na educação. Estava voltada para o trabalho técnico, para a implementação da teorias desenvolvidas em países como os Estados Unidos e os da Europa”. (CAMPOS E JUCÁ, 2006, p.37)
Durante a primeira metade do século XX, a principal característica da atuação em psicologia escolar era o caráter remediativo com o qual se tratavam os problemas de desenvolvimento e aprendizagem, evidenciando assim a forte influência da medicina e a consolidação de uma atuação clínica no trabalho do psicólogo escolar junto aos contextos educacionais.
A partir de 1970, com a promulgação da lei nº 5.692/71, amplia-se o sistema
educacional e há a expansão da escolaridade obrigatória e gratuita, trazendo mudanças significativas no contexto escolar. O aumento no número de alunos advindos de diferentes situações socioculturais trouxe a problemática da adaptação do sistema a esse novo cenário. Tal situação culminou em um crescimento na quantidade de alunos com dificuldade de aprendizagem, e a psicologia, com seu arcabouço psicométrico e clínico, foi convocada a participar mais assiduamente do sistema educacional, a fim de se debruçar sobre as queixas escolares.
A partir desse momento, as explicações para o fracasso escolar estiveram
baseadas nos resultados obtidos por meio de testes e instrumentos que
mediam desde a inteligência até aspectos afetivos e motores que ora
localizavam a problemática no indivíduo, ora relacionavam as dificuldades
escolares às condições socioeconômicas e/ou ao ambiente familiar. Desse
modo, a psicologia escolar, ao mesmo tempo que explicava os fenômenos e
ditava procedimentos de tratamento, contribuía para processos de
categorização, segregação e marginalização daquilo considerado como
inadequado (Marinho-Araújo & Almeida, 2005).
Como aponta Barbosa & Marinho-Araújo (2010), a insatisfação dos psicólogos escolares com sua atuação no final da década de 1970 provocou uma crise que se prolongou pelas duas décadas seguintes. Esse período se caracterizou pela produção de reflexões e pesquisas que evidenciavam os entraves causados por concepções remediativas e circunstanciais que respondiam a parâmetros pré-determinados, gerando repercussões que originaram desestabilização e insegurança na atuação em psicologia escolar, uma vez que esses procedimentos convencionais não mais respondiam às demandas e dilemas enfrentados.
O avanço das discussões propiciou, no final da década de 1980, a criação da
Associação Brasileira de Psicologia Escolar e Educacional (ABRAPEE), um
acontecimento importante para a delimitação da área de psicologia escolar.
Vale destacar, ainda, que desde 1990, a Associação Nacional de Pesquisa e
Pós-Graduação em Psicologia (ANPEPP) vem produzindo uma intensa
discussão acerca da atuação do psicólogo em instituições educacionais por
meio de Grupos de Trabalho (GT) que abordam o tema, contribuindo para a
reflexão sobre a atuação e responsabilidade do psicólogo na escola.
Entretanto, certos questionamentos ainda se mostram relevantes e denunciam a falta de contorno e apropriação desse lugar.
Ainda nos dias de hoje, o entendimento da ação do psicólogo na escola está
atrelado ao indivíduo. Principalmente ao fazer clínico tradicional, quando a clínica se faz dentro da escola em seu modo mais convencional, ou então,
quando a contribuição do psicólogo se dá pelo domínio das teorias do
desenvolvimento, no diagnóstico, normatizações e parâmetros cognitivos.
A fim de superarmos tal estigma, o saber psicológico, ao se debruçar sobre os fenômenos escolares, deve estar intimamente articulado a outras áreas do saber, considerando questões sociais, políticas e culturais em suas possíveis compreensões, a fim de abarcar toda sua complexidade.
A escola é, por excelência, o lugar do coletivo. É pelo grupo e pertencente a
esse que o psicólogo tece seus caminhos de compreensão e ação. É
imprescindível que a sua atenção não se volte apenas às demandas
individuais, mas à compreensão das relações e dinâmicas institucionais, assim como as dinâmicas dos alunos enquanto pertencentes a um grupo. Todo espaço institucional é atravessado por tensões e conflitos que direcionam o movimento das interações entre as pessoas que a constitui. É papel do psicólogo compreender tais interações e partir daí ser capaz de ler o grupo de alunos e/ou professores e conduzir movimentos na escola que permitam o deslocamento desses atores enquanto grupo, não apenas individualmente.
Desse modo, a intervenção do psicólogo, deve se dedicar a pensar os
processos grupais a partir de uma dimensão institucional e, sobretudo, política. Se aproximando das relações institucionais por meio da realidade social em que esta está inserida e da comunidade que as compõem.
Na medida em que a complexidade do fenômeno educativo abre novas
possibilidades de análises e compreensões, as ações devem estar
comprometidas com a constante desconstrução e construção das práticas
relativas à função dos profissionais que atuam na educação. Em tempos em
que o pensar vêm sendo suprimido abertamente em nosso país é inevitável
ressaltar a responsabilidade social dos educadores, incluindo psicólogos, na escola. Mais do que nunca, cabe a nós, proteger a instituição escolar dos
contínuos ataques à sua existência enquanto espaço de construção de pensar crítico, historicizado e contextualizado socialmente.
Que nós possamos pertencer a escola, junto a outros educadores, colaborando para criação e manutenção de um espaço de crítica e reflexão, que favoreça o reconhecimento da existência de um outro, diferente de mim, sendo acolhido em suas tantas possibilidades e que o coletivo seja vivido como pertencimento e responsabilização por todos que o compõem. Que sejamos multiplicadores de espaços que articulem a resistência e a transformação concomitantemente.
Referências Bibliográficas:
. Barbosa, R. M. & Marinho-Araújo, C. M. (2010). Psicologia escolar no Brasil:
considerações e reflexões históricas. Estudos de Psicologia (Campinas), 27(3),393-402. https://dx.doi.org/10.1590/S0103-166X2010000300011
.Campos, H. R. & Jucá, M. R. B. L. (2006). O psicólogo na escola: avaliação da
formação à luz das demandas do mercado. In S. F. C. Almeida
(Org.), Psicologia escolar: ética e competências na formação e atuação do
profissional (pp.37-56). Campinas: Alínea.
. Jobim e Souza, S. (1996). O psicólogo na educação: identidade e
(trans)formação. Em M. H. Novaes & M. R. F. de Brito (Orgs.). Psicologia na
educação: articulação entre pesquisa, formação e prática pedagógica. ANPEPP: Teresópolis, V.1, n. 5, pp.37-45.
. Marinho-Araujo, C. M., Almeida, S. F. C. (2005). Psicologia escolar: construção e consolidação da identidade profissional. Campinas: Alínea.
Quem escreve

Aline Leite
Doutoranda e Mestre pelo Programa de Estudos Pós Graduados em Educação: Psicologia da Educação da PUC-SP. Psicóloga graduada também pela PUC-SP. Membro do Grupo de Trabalho “Práticas psicológicas em instituições: atenção, desconstrução e invenção” da ANPEPP desde 2018 e do Grupo de Pesquisa “Práticas Educativas e Atenção Psicoeducacional na Escola, Família e Comunidade” (ECOFAM) desde 2009. Área de concentração de pesquisa: escola, infância e fenomenologia-existencial. Atuou como psicoterapeuta de adultos, crianças e adolescentes durante 8 anos. Atualmente é orientadora Educacional do Ensino Fundamental ll e Ensino Médio na Escola Alef Peretz.