Fazer 70 anos não é simples.
A vida exige, para o conseguirmos,
perdas e perdas no íntimo do ser,
como, em volta, mil outras perdas.
Fazer 70 anos é fazer
catálogo de esquecimentos e ruínas.
Viajar entre o já-foi e o não-será.
É, sobretudo, fazer 70 anos,
alegria pojada de tristeza.
Ó José Carlos, irmão-em-escorpião!
Nós o conseguimos…
E sorrimos
de uma vitória comprada a que preço?
a estranha felicidade da velhice.
À sombra dos 70 anos, dois mineiros
em silêncio se abraçam, conferindo
a estranha felicidade da velhice.
Carlos Drummond de Andrade
Muitos artigos sobre envelhecimento começam com a afirmação de que no ano de 2050 um terço da população brasileira será composta por pessoas com mais de 60 anos (1). Aliado ao fato de que hoje vivemos mais, o que é comemorado, vem também a constatação de que não estamos preparados para isso. O rápido envelhecimento populacional exige, portanto, novos estudos que possibilitem uma mudança na visão sobre o envelhecimento e no modo como construímos nossas cidades e como nos relacionamos com as diferenças a partir dessa nova constituição social.

Esse processo, por outro lado, coloca o envelhecimento em evidência, o que faz surgir uma série de filmes e livros com essa temática. É o caso da série Grace e Frankie (já na quinta temporada e disponível na Netflix) que aborda a vida de duas mulheres idosas que precisam se reinventar quando seus maridos assumem seu romance e decidem se separar delas. Cada capítulo aborda um dos muitos desafios do envelhecimento, tudo com muita graça e leveza.
Num dos episódios da última temporada, assistimos a duas senhoras tentando chegar ao outro lado de uma avenida. Uma delas, mais lenta, não consegue atravessar em tempo hábil e ao chegar ao meio da avenida precisa recuar por medo de ser atropelada. É angustiante acompanhar as reiteradas tentativas que culminam na desistência de chegar ao outro lado. Talvez o angustiante seja ver, tão acentuada, a fragilidade do corpo exposta à lógica da rapidez e produtividade que rege as grandes cidades.
Para aguentar esse ritmo frenético é exigido de qualquer pessoa um corpo ágil e forte. Por essa razão, esse ambiente torna-se hostil para grande parte de sua população: crianças, idosos, cadeirantes e pessoas com qualquer tipo de necessidade especial, ao enviar constantes mensagens de que não têm lugar, não deveriam estar ali. A duração de um farol de pedestres revela o quanto a cidade não comporta o ritmo de qualquer pessoa que tenha um passo mais lento.
Para pensar sobre o efeito que essa rapidez tem sobre a psique de uma pessoa mais velha, vamos acompanhar como o psicanalista Jack Messy (2) diferencia envelhecimento de velhice. Envelhecer para ele seria um processo irreversível que se inicia ao nascermos e se encerra com a morte. No meio, toda a vida com suas aquisições e perdas. A velhice, ao contrário, estaria referida unicamente ao fato de se chegar à idade avançada, rumo ao fim. Como definir em que momento se entrou na velhice? Para a psicanálise, tanto os escritos quanto a clínica parecem confirmar que essa entrada se dá quando um fato surge de maneira brutal e há uma ruptura que cessa o equilíbrio entre perdas e aquisições, deixando a pessoa incapaz de se relançar a um novo investimento libidinal.
É assim que um sujeito se torna um idoso, inscrito numa imagem negativa, incapaz de se ver como objeto de desejo, o que é confirmado pela sociedade que sinaliza o quanto ele é inútil e improdutivo. O tempo insuficiente do farol grita ao sujeito que este é velho, está perto da morte, não tinha nada que estar fazendo ali no meio da rua. Ignora o processo em andamento para condená-lo ao fim.
A questão do tempo acelerado lança o sujeito idoso numa percepção avassaladora de não pertencimento. Se de alguma forma ele se dava conta de seu processo de envelhecimento, ainda que de maneira discreta e não muito consciente, estar fora do tempo estipulado socialmente o joga direto na velhice, sem intermediação. É o que Messy vai apontar como o encontro de uma percepção de dentro, o sentir-se velho, e uma imagem de fora que reforça a ideia de exclusão.
No poema que abre esse artigo podemos notar que muita ênfase é dada às perdas. Mas é possível perceber que ainda há um equilíbrio entre o reconhecimento de tudo o que já se foi e a importância do que ficou, como esse amigo que se pode abraçar e com quem se comemora a entrada nos 70 anos. Ainda que o poeta se sinta velho, o amigo a quem abraça reafirma, desde fora, que ainda há lugar para eles no mundo.
No livro O Eu-pele, Didier Anzieu afirma que o funcionamento psíquico é duplamente dependente: do corpo biológico, que o suporta e do corpo social, composto por todas as estimulações, crenças e normas que emanam do grupo social ao qual pertence, desde a família até o meio cultural.
Conforme envelhecemos, o corpo biológico, que nos primeiros anos costuma ser tão disponível e amistoso, começa a se colocar na cena com mais insistência: torna-se mais trabalhoso e exigente e já não se recupera tão rápido de uma noite mal dormida quanto antes. Com o passar dos anos fica mais frágil e vulnerável e pode falhar como sustentação psíquica por se tornar a sede de muitas transformações penosas e de difícil superação. É mais difícil realizar as tarefas, a manutenção da saúde é mais trabalhosa, há dores mais constantes e uma maior aproximação da finitude, ainda que não se possa prever quando esta se dará (3).
Esse corpo que envelhece o faz junto ao grupo ao qual pertence, submetido a regras, valores, crenças. Esse corpo social se organiza de acordo com os valores vigentes, privilegiando certos grupos e excluindo outros, como já mostramos. Ao excluir, se torna menos continente, falhando como suporte psíquico e confirmando exteriormente a sensação interior de inutilidade do sujeito.
Essa sensação de exclusão pode ser tão grande que atrapalha o fluxo do sujeito pela cidade, fazendo-o se sentir incapaz de sair de casa. Essa reclusão é percebida pelas pessoas mais próximas que passam a se preocupar com a possível depressão que o acomete. Depois de buscar por muitos tipos de ajuda, algumas famílias chegam ao acompanhante terapêutico (at) e fazem junto a ele uma aposta.
No meu cotidiano de acompanhante terapêutica me deparo com familiares angustiados por não saberem o que fazer com alguém que não se interessa por mais nada. O acolhimento a esses familiares e a escuta de sua angústia possibilita a construção da entrada do profissional na vida do idoso.
Desde sua chegada, que pode ser recebida com desconfiança, até a criação de um laço possível que permita surgir a confiança e a formulação de um pedido, qualquer que seja ele, há um fazer próprio do Acompanhamento Terapêutico (AT). Susana Kuras e Silvia Resnik definem essa especificidade lindamente: ajudar a procurar um destino para a dor psíquica. Gostaria de me aprofundar nessa definição para tentar extrair dela a complexidade que porta.
Em primeiro lugar o at é aquele que ajuda a procurar, o que o insere numa interessante horizontalidade com o sujeito. O at não sabe mais, apenas coloca-se ao seu lado para com ele procurar, o que implica que aceita a possibilidade de não encontrar. Creio que isso esteja ligado ao interesse pelo processo, mais do que por um possível objetivo a alcançar.
Se o at ajuda a procurar um destino para a dor psíquica é porque crê que essa dor que acomete o sujeito, apesar de ser inteiramente dele, pode ser transformada em outra coisa, destinada, reconfigurada. A clínica do AT se propõe a acompanhar o sujeito onde quer que ele esteja. Muitos atendimentos acontecem dentro de casa, seja por conta de uma incapacidade física, medo de cair ou mesmo um desinteresse por novidades, e muitas vezes se ganha as ruas, com a possibilidade de se aventurar e reconquistar uma cidade que parecia perdida.
O at, com sua presença constante, possibilita ao sujeito que sofre reencontrar prazeres perdidos, projetos que ficaram para trás. Ao se colocar ao lado desse sujeito com seu corpo e sua subjetividade, pode ser capaz de fornecer a sustentação psíquica necessária para que sejam retomados laços e para que se criem pontes entre esse sujeito e seu meio social, seus interesses, sua cidade.
Notas de rodapé
(1) Segundo estimativa do IBGE
(2) Jack Messy é um psicanalista francês que trabalhou com envelhecimento por muitos anos. Alguns autores, como André Quaderi, consideram que ele foi o primeiro a apostar na presença de uma vida psíquica em pessoas que sofriam de demência e a criar um aparato teórico para se trabalhar com esses pacientes
(3) Há aqui a importante ação da medicina que toma o corpo velho de assalto, prolongando a vida ao máximo possível (o que nem sempre é bom ou desejado). Para esse assunto, recomendo o belo livro “O tempo e os medos”, de Maria Silvia Bolguesi.
Referências Bibliográficas
- Andrade, Carlos Drummond de. Amar se aprende amando: poesia de convívio e de humor. Rio de Janeiro, Record, 1999.
- Anzieu, Didier. O Eu-pele. São Paulo, Casa do Psicólogo, 1989.
- Kuras de Mauer, Susana; Resnicky, Silvia. Territórios do acompanhamento terapêutico. Buenos Aires, Letra Viva, 2009
- Messy, Jack. A pessoa idosa não existe. São Paulo, ALEPH, 1999
Quem escreve

Luciana Mannrich
é formada em Ciências Sociais e Psicologia. A paixão pela cidade vem de longe e a ela foi se juntando algo que parece mesmo uma continuidade: a clínica do acompanhamento terapêutico. Fez formação no Instituto A Casa e no Sedes Sapientiae e hoje desenvolve um trabalho clínico voltado para pensar as questões do envelhecimento. lumannrich@hotmail.com
Maria Laurinda
abr 4, 2019 at 20:25
Texto necessário e muito bem construído. Nestes tempos de desamparo e de exclusões, é promissor e um alento contar com a possibilidade de uma clínica solidária e criativa.