Almoço de domingo em uma ‘padoca’ perto de casa, meu companheiro e eu nos sentamos em uma mesa de calçada. O dia está ensolarado, embora ainda seja inverno. Na mesa ao lado, na verdade atrás de mim, três amigos por volta dos seus 40 anos conversam sobre política enquanto almoçam. Comentamos entre nós que temos ouvindo muitas conversas sobre política por onde passamos ultimamente. Afinal, é ano eleitoral, na verdade O Ano Eleitoral eu diria.
Os amigos já falaram sobre um governador e sua negociação com o crime organizado, sobre a política previdenciária, um deles reclamou que não estava conseguindo emprego com carteira assinada e em seguida declarou que votará no candidato mais assumidamente a favor do cenário que ele reclamara na sentença anterior. Vai entender!
Eis que um deles fala jocosamente da candidata que apresentava como proposta central (re)estatizar tudo, como ele disse. Seus companheiros perguntam de quem ele fala. Diz o partido (errado) e solta: Uma mulatinha de cabelo enrolado! Um dos amigos então sabe de quem ele está falando e o corrige. Fala que o partido é outro que não o que ele falou. Seguem a conversa agora que todos sabem de quem ele está falando.
Meu companheiro, um homem branco reconhecedor de seus privilégios e até seus mais intrínsecos racismos, afinal o racismo é tão sofisticado que até quem sofre pode reproduzir contra si mesmo, engoliu seco a comida e me deu aquele olhar de cumplicidade. Em seguida ele me perguntou como eu me sinto quando ouço isso no dia-a-dia. Respondo que não sei. Nunca havia pensado. Fico pensando. Será que nunca pensei mesmo? O que será que penso?
Em seguida começo meus diálogos mentais-ideais. Neles, ao pagarmos nossa conta e nos levantarmos para sair eu paro na mesa dos amigos e os cumprimento pelo papo político interessante (realmente estava), mas em seguida os alerto que para não serem acusados de racistas, que não é uma questão apenas de ser ou não ser, deveriam parar de usar termos como ‘mulatinha’ e afins. Pode chamar de ‘a única candidata negra’ que não é ofensa, eu diria, ao contrário de ‘uma mulatinha’. Tenho amigues que até poriam essa cena em prática, com uma categoria que eu jamais conseguiria, mas eu simplesmente não sei se era o campo. Eu me colocaria numa posição vulnerável, afinal quem me chamou na conversa, não é mesmo? Afinal eles nem estavam se referindo a mim diretamente, uma vez que eu não me reconheço como ‘mulatinha’. Eu sou uma mulher preta (como eu não gostava que meu pai me chamasse quando eu era criança). Covarde! Na minha cabeça ecoa. Fugindo da briga. Penso de novo.
Nessa situação não quis me arriscar mesmo, há tantos outros espaços e situações que consigo me manter segura e conseguir diálogo. Recentemente uma amiga compartilhou seu incômodo ao se deparar com um manual que fez uso da ‘diversidade’ nas imagens. Mas no fim o racismo estava ali para quem conseguisse ver. E foi muito gostoso quando ela me disse que em grande medida esse novo olhar se deve à convivência e reflexão que eu e outres amigues compartilhamos com ela.
Isso me remete a uma conversa tida com uma prima muito querida, casada com o primo de meu companheiro, em nossos encontros que tinham assuntos sempre dos mais variados e sem tabu algum (eu acho). Chegamos, não me lembro como, ao assunto de palavras racistas que reproduzimos e ouvimos corriqueiramente. Começamos todos a fazer um exercício e pensar em algumas expressões que nos ocorreram mais facilmente. Mulata, neguinho faz isso…, judiação, denegrir, baianagem (ou baianada), serviço de preto, etc. Posso não me lembrar de todas que evocamos no dia. Então começamos a pensar as palavras, já existentes em nosso vocabulário, que podemos usar para substituir tais palavras e expressões de maneira que ninguém precise ser ofendido. Exige-nos um pouco de esforço no princípio, afinal nosso vocabulário é bem extenso, mas conseguimos usar outras expressões e palavras que exprimem exatamente o que queremos e não precisamos diminuir ou mesmo subjugar ninguém. E então que num próximo encontro, minha prima diz que está parando de usar a palavra denegrir e que, além disso, quando ouve alguém próximo falando ela aproveita para chamar à reflexão do uso tal qual ela já havia feito.
Sobre essas atitudes e ações eu sei dizer o que sinto. Dá um orgulho imenso des amigues e uma esperança de que os ‘chatos do politicamente correto’ se multipliquem a tal ponto que esse termo esdrúxulo deixe de ‘fazer sentido’ para algumas pessoas. – Agora o que tem a ver o Black Friday nisso tudo Wally? Tem a ver que é uma palavra originada do Inglês que, além de indicar grandes descontos (quem não gosta?), ao ser traduzida significa Sexta-feira Negra, sendo assim o único dia no calendário anual (nos EUA é em novembro) em que um ‘dia negro’ (hoje) é visto com bons olhos, como não ocorre com o dia da Consciência Negra. Na verdade, como um feriado a mais para viajar e descansar é bem visto sim, mas na hora de refletir o que significa aí as ‘opiniões’ são muitas e chovem humanistas dizendo que deveria ser dia da Consciência Humana. Isso quando não chovem os ‘bem humorados’ que dizem: Vamos criar o dia da Consciência Branca, da Consciência Azul e por ai vai.
Sobre essas ‘sugestões bem humoradas’ só consigo ter cada dia mais certeza que o caminho é continuar disputando as narrativas. Tive a renovação desse pensamento ao participar de uma roda de leitura em uma unidade penitenciária feminina em que contribui lendo um cordel que narrava a história da rainha quilombola Tereza de Benguela que me acompanha desde pequena. Após a leitura abriu-se espaço para que as participantes compartilhassem suas impressões sobre o texto. E de primeira já houve a manifestação de uma mulher que se reconhece negra dizendo que gostou muito do texto, principalmente porque nas aulas de história na escola ela nunca aprendeu sobre uma mulher negra como ela que lutou pela sua liberdade e de seu povo. Esse comentário valeu meu ano. Ali, me vi exercendo uma resistência em nada passiva.
Nessas experiências é que tento me apegar e seguir focada, pois ainda há muito chão para que a grande maioria de nós possa enxergar o racismo, não como sendo algo que o outro faz, nunca eu, mas acima de tudo como o que realmente ele é: uma tecnologia de produzir inimigos, estrangeiros, aquele que não sou eu e então não é humano como eu (Arendt; Foucault; Mbembe).
E você já parou de usar palavras racistas no dia-a-dia?
Para um momento de lazer ou mesmo para destruir sem dó “argumentos” racistas, recomendo:
ARENDT, Hannah. Origens do totalitarismo: Antissemitismo, imperialismo, totalitarismo. Trad. Roberto Raposo. São Paulo: Companhia das Letras, 2012.
ARRAES, Jarid. Heroínas Negras Brasileiras em 15 cordéis.1ª dição. São Paulo: Pólen, 2017.
FOUCAULT, Michel. Em Defesa da Sociedade. Curso no Collège de France (1975- 1976). São Paulo: Martins Fontes, 2005.
MBEMBE, Achille. Necropolítica. 1ªedição. São Paulo: N-1 Edições, 2018.
Quem escreve

Wallesandra Rodrigues
Cientista Social pela Fundação Escola de Sociologia e Política de São Paulo - FESPSP, mestranda na área de Ciências Humanas e Sociais na Universidade Federal do ABC - UFABC, desenvolve pesquisa com enfoque na situação de mulheres negras encarceradas em São Paulo. Integrante do Coletivo 21 de Novembro - 21N de alun@s negr@as da FESPSP. Membra do Grupo de Estudos Resistência (UFABC). Uma mato-grossense de "tchapa" (nascimento) que já foi bem nômade nessa vida. Por enquanto aqui.
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