“dá pra ficar quieto, Erick?!”, ela berrou, de repente.
O menino juntou imediatamente seus blocos de madeira e, desengonçado, tentou levá-los entre os braços, sem fazer qualquer barulho até chegar ao quarto. Estava evidente que a mãe não estava num de seus dias bons. Quando a mamãe estava naqueles dias, ele preferia ficar brincando sozinho no quarto. Já a Melissa, sua irmã, ao menor sinal de irritação materna, escapulia para a casa da Helena, que morava a três casas de distância, depois da casa dos Lerner. Erick sempre se encontrava sozinho e, se em algum momento se sentia mal por não ter amigos para brincar – e assim ter uma desculpa para sair de casa -, era quando os dias ruins da mamãe ficavam bem ruins. Nesses dias, ele chegava a desejar que a mãe fosse embora, de uma vez por todas; ou pelo menos por algum tempo, como no verão passado, quando o pai deixou ela numa espécie de hotel para poder descansar, como se em casa não fosse possível ter um pingo de descanso. E, para a surpresa – e confusão – de Erick, ela de fato retornou com a aparência descansada; era quase uma nova mãe, uma mãe que tinha que descansar e tomar remédios, mas uma mãe que agora podia sorrir. O menino sentia temeroso pela mãe ao mesmo tempo que lhe vinha certo alívio . Em muitos momentos ele se pegou observando-a, sem que ela notasse, e imaginando que algo se escondia por trás daquele novo e estranho sorriso da mãe. Às vezes lhe parecia bobo, de retardado, como os meninos costumavam se xingar na escola, e em outros momentos ele encontrava na expressão dela uma dormência, como se ela estivesse dormindo por trás dos olhos abertos, dos lábios esticados e da voz que podia adquirir repentinamente um tom agudo quando se excitava, constrangendo todos ao redor. O que importava agora, no entanto, era que ela estava de volta – e sorridente, afinal! Era o que o pai repetia aos filhos e que Erick passou a repetir para si mesmo.
Mas aquele dia era diferente. Mamãe estava lá na janela, olhando sei lá o quê, talvez porque fosse um dia de sol. Ainda que fosse um dia ensolarado nem mesmo a Melissa tinha se animado em brincar no quintal ou visitar Helena. Havia alguma tensão se espalhando pela casa e o motivo dessa tensão, com certeza, era a visita da vovó que aconteceria. Espiou pela fresta da janela, e achou a mãe levantando o olhar, repetidamente, para o relógio de parede, respirando fundo, suspirando em seguida, e concluiu que era melhor permanecer no quarto a menos que fosse chamado.
A avó – a mãe da mãe – não deu tempo para a filha dizer “boa tarde” ou até algo intencionalmente mais afetuoso como “que bom te ver, mãezinha.”, “quantas saudades eu senti!”, quem sabe até se seguiria um convite de braços abertos para um abraço. Não. Assim que a porta foi aberta a avó andou em disparada para a cozinha, com o bolo nas mãos, e só soltou a respiração quando o depositou dentro da geladeira. “O bolo é para as crianças. Não para você.” foram suas palavras, quando finalmente se dirigiu à filha. “que bom te ver também, mãe.”, respondeu voltando a se sentar ao lado da janela. A senhora se sentou, de pernas cruzadas na ponta do sofá, mostrando estar incomodada com algo ou com tudo. Ostentava um elegante par de brincos vermelhos sob aquele cabelo afofado com muito laquê, o seu vestido listrado era impecavelmente passado e limpo, contrastando com o jeans abarrotado e camiseta branca com manchas de café da filha (a mesma que usou no dia anterior).
“ E então esse tal médico novo como está? está funcionando ou não?” – disse sem rodeios, como era seu costume.
“não é médico, mãe. é um psicanalista.”
“Se não é médico, eu não entendo o que você está fazendo lá!”
“já te expliquei diversas vezes, mãe. não começa. não quero ter essa discussão outra vez.”
“ ah, não ser que esse tal `tratamento`, na verdade signifique outra coisa…” a mãe levanta as sobrancelhas e olha para o lado.
“não venha, mamãe”
“O quê, minha filha? Eu não disse nada! Se a sua consciência está pesada, aí eu não tenho nada a ver.”
“mas a minha consciência tá limpa…” embora estivesse recostada na janela, a filha procurava algum lugar para se apoiar durante toda a conversa. Sua mãe, enquanto isso, examinava atenta cada detalhe do aposento para poder expressar seus julgamentos mais tarde.
“Sabe, minha filha, a minha mãe sempre me dizia que em briga de marido e mulher não se mete a colher. Então, não sei por que você está metendo esse homem aí no meio dos seus problemas com seu marido.”
“mãe, meus problemas não tem nada a ver com a minha relação com o Rodrigo. Lógico, nós temos algumas questões, mas não é nada disso.”
“Filha, se não tivesse questão entre vocês dois, você não estaria chorando aí pelos cantos!” , a filha se levantou para tentar interrompê-la, mas foi inútil, “ Se o seu marido ficasse mais em casa, se não passasse noites fora bebendo, se ele desse alguma atenção para os filhos, se ele não se envolvesse com… com.. ah, aí isso – eu te garanto – isso tudo não ia acontecer.”
“ chega, mãe. vou embora.” Pegou a jaqueta do lado da porta e saiu sem se despedir dos filhos.
Ele sempre esforçava para não fazer barulho quando chegava aquela altura da noite. Mas era sempre em vão. Ao mesmo tempo que era sorrateiro, Rodrigo sempre fora ruidoso, um bruto, incapaz de perceber a quantidade de barulhos que produzia. A não ser claro que a esposa estivesse acordada, aí sua preocupação era em sorrir naturalmente para ela e soltar alguma reclamação do trabalho que, mais uma vez, liberava-o tão tarde da noite. Em algumas fases – as que ele mais se ausentava – , ele acrescentava ao discurso a injustiça de lhe privarem da chance de ver os filhos e a esposa. Muitas vezes, no entanto, apenas perguntava se tinha algo para jantar (e sempre tinha, nem uma única noite faltou jantar naquela casa, afinal, ela sabia o que podia acontecer caso o marido corresse o risco de passar fome). Nos dias em que ela estava dormindo, ou pelo menos fingindo, ele jantava no andar de baixo, sempre assistindo televisão por algumas horas ( e esquecendo da própria preocupação de não fazer barulhos) , até o momento de subir as escadas, se despir no escuro do quarto e deitar, sem tocar na esposa. Naquela noite, a sua esposa esperou que ele se deitasse ao seu lado, entrasse debaixo das cobertas, apenas de cueca, para então demonstrar que estava ainda acordada. “Oi, amor, não vi que estava acordada.”, “sim, estou. Onde você estava?”. “Ah, você sabe como é, amor, nesse final de ano o escritório fica abarrotado de trabalho.”, “tem certeza que estava no trabalho?” , “Quê? Como assim, amor? Você tá brava com o quê?” Enquanto ele ainda exibia risos nervosos, ela preferiu virar e voltar a fingir que dormia. Já tinha tomado sua decisão. Rodrigo não tinha como prever que na manhã seguinte, tomaria café da manhã completamente sozinho em sua própria casa.
Ela não podia deixar de admitir a si mesma o seu prazer por aquele dia chuvoso chegar para o enterro de sua mãe. Não poderia conceber que seu enterro fosse coroado com um dia lindo e ensolarado. Escondeu seus sentimentos, preocupada principalmente com as crianças. Desejava que eles respeitassem a figura da avó, mesmo que talvez, quando se tornarem adultos, percebessem por si próprios a pessoa egoísta, cruel, mesquinha e devastadora que poderia ser aquela senhora que levou bolo e doces para eles por toda a infância. A mesma avó dos presentes caros nos dias de aniversários era a mesma pessoa incansável em destruir emocionalmente a própria filha. “Eu não me incomodaria se a odiassem”, pensou. Mas não queria que aquilo viesse dela. Deveriam desprezá-la por conta própria. Assim como ela havia aprendido. Tudo a seu tempo. Uma dor por vez. Teriam de lidar com o pai. Teriam de lidar com ela, afinal. A vida toda.
Ela se surpreendeu que depois de cinco anos ele por fim apareceu. Por muito pouco ela não deixou de ligar para avisá-lo da morte da ex-sogra. Não lhe ocorreu que poderia ser realmente importante a presença do pai das crianças naquele dia. Mas algo na mudez quase sombria do filho Erick fez com que ela lembrasse do antigo marido. Ligou a contragosto e surpreendeu-se com a prontidão com que ele confirmou a sua presença.
“Quem diria, hein?”, disparou, irônico, assim que a encontrou, “a grande paciente virou a grande psicanalista.”
“Pois é. E quem diria que o grande babaca continuaria um grande babaca?”. Ele riu alto.
Os dois se mediram. Ela com um vestido preto sóbrio, com o desenho de figuras geométricas discretas e um salto alto que alguns diriam ser audacioso para alguém de sua idade. O seu cabelo preto e liso, no entanto, era o que mais chamava a atenção, brilhante como nunca, sem se abalar pelo aparecimento das mechas grisalhas. Ele, por outro lado, estava vestido como nos anos de casamento – sapatos bem lustrados, calça social e camisa branca -; a idade dera novos traços ao seu rosto devido à calvície avançada e pelo rosto inchado. Marcas da bebedeira, ela pensou.
“ e as crianças como estão?”
“Não finja que se preocupa com eles pra mim. Vá fingir pra eles.”
“Está bem, está bem. Já vi que nossa conversa não vai longe e eu não vou discutir no velório da sua mãe. Só me responda uma coisa.”
“Diga.”
“O caso, esse tal caso, esse que te deu fama e que te fez `a grande psicanalista`. Que fez com que todo mundo quisesse saber você.”
“Sim.
“É impressão minha ou a história que você conta, o menino que você descreve, esse menino por acaso era o nosso Erick?”
“ O ´nosso Erick`?! Nunca houve um `nosso Erick`. Rodrigo”
E antes que ele pudesse responder, ela saiu andando mais uma vez.
***
Este caso não é um caso propriamente dito, ou antes, poderíamos dizer que não se trata de alguém específico. Ao mesmo tempo é, e foi, o caso de muitas mulheres. Essa pequena história foi inspirada desta vez não em uma paciente e sim numa psicanalista. Estou falando de Melanie Klein. Durante a minha pesquisa para casos clínicos que pudessem interessar essa coluna, me deparei com a biografia dela e me surpreendi. Para quem não conhece a história dela (como eu), Melanie Klein antes de ser psicanalista passou por um casamento infeliz, sofreu depressão durante a infância dos filhos, foi analisada por Ferenczi e iniciou a carreira como psicanalista através da análise dos filhos (algo impensável nos dias de hoje, cabe observar). Sem contar ainda o complexo contexto familiar de quando era criança, Klein tem uma incrível história de luta e sofrimento. Mas, acima de tudo, – e esse foi o motivo pela qual escolhi a história dela – Klein foi uma mulher da primeira metade do século XX que enfrentou os preconceitos sexistas dentro e fora de sua família, divorciou-se numa época em que isso era impensável, tornou-se uma importante intelectual em um círculo social predominantemente masculino (Anna Freud era, provavelmente, a única exceção além dela), tendo que lidar em paralelo com seu sofrimento interno. Ou seja, ela deixou o papel de submissa, de paciente, de doente para o conquistar o lugar de protagonista, psicanalista de sucesso e responsável pelos própria vida e suas escolhas. Como todos deveriam ser. Não deixo de me perguntar em quantos milhares de casos de depressão, transtornos, patologias de todo tipo de gravidade, surgiram direta ou indiretamente devido a opressão, submissão e humilhação imposta às mulheres ao longo dos séculos. Hoje que, felizmente, assuntos como depressão (incluindo a pós-parto), relacionamentos abusivos, opressão das mulheres, estão cada vez mais sendo abertamente debatidos e combatidos, o exemplo de Klein surge como um bom lembrete a todas as mulheres que sim, os obstáculos podem ser enormes, de que há muito para ser feito no sentido de igualdade de gêneros, mas que a potência feminina é e sempre será maior do que aqueles que a temem.
Obs: embora eu não tenha me prendido a uma fonte específica sobre a biografia de Melanie Klein, indico a quem se interessar em saber mais sobre o assunto, o livro de Julia Kristeva que faz parte de uma trilogia chamada “O Gênio Feminino: A Vida, A Loucura e As Palavras”. O Tomo II é o dedicado à Klein, sendo o primeiro abordando Hannah Arendt e o terceiro à escritora Colette.
Quem escreve

João Gabriel Andreucci
é graduado em Psicologia na PUC-SP, com aprimoramento Profissional em "Psicoterapia de Casal e Família" na Clínica Psicológica Ana Maria Poppovic. Cursou também Letras na USP e a pós "O Livro para a Infância" na A Casa Tombada. Desde a sua primeira graduação, em 2009, adentrou o rico universo da Infância por diferentes contextos como escolas, instituições clínicas, espaços de acolhimento à famílias da primeira infância, espaços de educação não-formal, tutoria, entre outros. Sua atuação , nas mais diferentes instituições, sempre reuniu esses três universos que se encontram, se complementam e se multiplicam: Psicologia, Infância e Literatura. joaogabrielandreucci@gmail.com