Durante a minha graduação em Psicologia, entre as diversas disciplinas que cursei, havia uma que se propunha a discutir o impacto das tecnologias sobre a prática clínica do psicólogo. Isso foi em 2003, quando chamadas de vídeo e troca de mensagens de texto via internet já eram recursos bem usados pela classe média brasileira. Com o aumento progressivo do uso dessas ferramentas de comunicação, fazia sentido perguntar se e como essas tecnologias mudariam as práticas clínicas. Lembro-me de que uma questão muito debatida nessa disciplina dizia respeito à possibilidade de se fazer atendimentos terapêuticos por mensagens de texto, via chat. Boa parte da turma, eu incluído, se colocou de forma bem crítica em relação a essa possibilidade de intervenção. Afinal, como seria possível estabelecer um bom vínculo terapêutico se você não está vendo a pessoa, olhando nos seus olhos? Será que as interpretações e análises do caso não ficariam prejudicadas, já que muito do que se faz em clínica é baseado não só no que o paciente fala, mas na maneira como ele fala, no tom de voz, no olhar, em pequenas mudanças na face e na linguagem corporal?
Os anos se passaram, terminei minha graduação, fui me especializando em neuropsicologia, depois em terapia comportamental e acabei tendo algumas experiências que foram mudando minha opinião sobre o assunto. Em função de dificuldades para conciliar minha agenda com a de meus pacientes (e do crescente uso dessas tecnologias de comunicação), acabei me vendo fazendo orientação a pais e até mesmo algumas sessões de terapia via Skype. Eram pacientes que já estavam comigo há um tempo, portanto, esse tipo de atendimento era a exceção e não a regra. Há quatro anos, uma brasileira que morava na Europa me procurou para fazer terapia. Ela estava com dificuldades para se adaptar à cultura local e também não havia encontrado nenhum terapeuta na cidade em que morava. Decidiu fazer terapia com um brasileiro. A única opção nesse caso foi ser atendida via Skype. Essa foi uma experiência muito peculiar porque apesar de eu poder vê-la pela câmera, não achei nada fácil o contato. Isso aconteceu muito em função de alguns problemas tais como falta de sincronização entre voz e vídeo, algumas travadas e cortes na ligação; mas também havia a questão de que só era possível ver a face da paciente, o que não permitia nenhum tipo de análise da linguagem corporal. Acredito que a ajudei em algumas questões, mas definitivamente há sutilezas importantes do caso que ficam difíceis de perceber quando a interação tem um intermediário.
A tecnologia mudou a maneira como as pessoas interagem e os profissionais da saúde mental precisam incorporar isso no seu repertório clínico. Um exemplo de mudança é o uso de smartphones, que permitem que as pessoas se comuniquem de quase qualquer lugar, além de permitir recursos de organização pessoal, jogos, músicas, etc. De fato, o número de proprietários de smartphones aumenta progressivamente a cada ano e estima-se que quase três bilhões de pessoas tenham um aparelho em 2020 (Statista, 2016). No Brasil, mais da metade da população possui um aparelho smartphone e esse número continua aumentando apesar de crise financeira (FSP, 2016). Sendo assim, é natural que surjam novas formas de prover atendimento psicológico que façam uso desses recursos.
Recentemente, começaram a aparecer na literatura relatos do uso de tecnologias para prover intervenções em saúde mental. Especificamente, diversos grupos de pesquisa desenvolveram aplicativos destinados a tratar pessoas com depressão com base em estratégias e técnicas adaptadas da psicologia comportamental e cognitivo-comportamental. Muitas dessas ferramentas se propõem a fazer, de forma automatizada ou parcialmente mediada por um profissional da saúde, ativação comportamental para melhorar sintomas de depressão. A ativação comportamental é um tratamento breve e estruturado para depressão cujo objetivo é aumentar a o engajamento do cliente em experiências potencialmente reforçadoras (Martell, Dimidjian, & Herman-Dunn, 2010). É um tratamento que toma por base alguns trabalhos clássicos em análise do comportamento (por exemplo Ferster, 1973; Jacobson et al., 1996; Lewinsohn, 1974), segundo quem a depressão envolveria diminuição de certos tipos de atividades acompanhada por um aumento de atividades de evitação e fuga. Uma das premissas da ativação comportamental é que os problemas que ocorrem na vida de pessoas mais vulneráveis reduzem sua habilidade para experimentar reforços positivos em seu ambiente, o que leva aos sintomas e comportamentos que chamamos de depressão (Martell et al., 2010).
A ativação comportamental supõe que a melhora da depressão envolve auxiliar os clientes a se engajarem em comportamentos sentidos como prazerosos ou produtivos, ou comportamentos com potencial de melhorar sua situação de vida, promovendo mais reforços positivos (Martell et al., 2010). Portanto, as sessões de ativação comportamental são focadas em ações e resolução de problemas, o que demanda que o cliente teste novas formas de se comportar em situações que vive no dia-a-dia. A cada semana, terapeutas e clientes trabalham juntos para desenvolver tarefas de ativação que devem ser completadas entre sessões e enfrentar barreiras no processo.
Aqui voltamos às questões sobre o uso de tecnologias sobre a prática clínica: é possível prover um bom tratamento de ativação comportamental via dispositivo eletrônico, dado que não necessariamente há um terapeuta envolvido? A literatura tem mostrado que pacientes que usam esses aplicativos apresentam melhora de sintomas de depressão. Mais do que isso, há resultados positivos tanto em casos onde aplicativos de ativação comportamental foram usados com orientação de profissionais da saúde (alguns dos quais nem eram psicólogos, mas técnicos treinados) como em casos onde o aplicativo foi usado sem nenhum tipo de intermediação (Firth et al., 2017; Fitzpatrick, Darcy, & Vierhile, 2017; Huguet et al., 2016).
Não acho que essas formas de terapia substituirão os métodos mais tradicionais de intervenção, assim como a presença de profissionais capacitados também não será dispensável. O fato de ser possível fazer novas formas de intervenção também não substituirá tratamentos farmacológicos e afins, mas talvez uma associação entre essas diferentes abordagens pode se provar benéfica. Por ora, essas intervenções ainda são insipientes, mas muito investimento tem sido feito nesse sentido. A tecnologia, ao mesmo em que traz novas questões para o ser humano, também traz novas formas de lidar com certas demandas. Por que não usar isso a favor de nossos pacientes?
Referências
Ferster, C.B. (1973) A Functional Analysis of Depression. American Psychologist, 28, 857-870.
Firth, J., Torous, J., Nicholas, J., Carney, R., Rosenbaum, S., & Sarris, J. (2017). Can smartphone mental health interventions reduce symptoms of anxiety? A meta-analysis of randomized controlled trials. Journal of Affective Disorders, 218, 15–22. https://doi.org/10.1016/j.jad.2017.04.046
Fitzpatrick, K. K., Darcy, A., & Vierhile, M. (2017). Delivering Cognitive Behavior Therapy to Young Adults With Symptoms of Depression and Anxiety Using a Fully Automated Conversational Agent (Woebot): A Randomized Controlled Trial. JMIR Mental Health, 4(2), e19. https://doi.org/10.2196/mental.7785
FSP. (2016). Número de smartphones em uso no Brasil chega a 168 milhões, diz estudo. Retrieved May 16, 2018, from http://www1.folha.uol.com.br/mercado/2016/04/1761310-numero-de-smartphones- em-uso-no-brasil-chega-a-168-milhoes-diz-estudo.shtml
Huguet, A., Rao, S., McGrath, P. J., Wozney, L., Wheaton, M., Conrod, J., & Rozario, S. (2016). A systematic review of cognitive behavioral therapy and behavioral activation apps for depression. PLoS One, 11(5), e0154248.
Jacobson,N.,Dobson,K.,Truax,P.,Addis,M.,Koerner,K.,Gollan,J.K.,…Prince,S.E. (1996). A component analysis of cognitive-behavioral treatment for depression.
Journal of Consulting and Clinical Psychology, 64, 295-304.
Lewinsohn, P. (1974). A behavioral approach to depression. The psychology of
depression: Contemporary theory and research. Oxford, UK: John Wiley.
Martell, C. R., Dimidjian, S., & Herman-Dunn, R. (2010). Behavioral activation for depression: a clinician’s guide. New York: Guilford Press.
Statista. (2016). Number of smartphone users worldwide 2014-2020 | Statista.
Retrieved May 15, 2018, from https://www.statista.com/statistics/330695/number-of-smartphone-users-worldwide/
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Quem escreve

Pedro Fonseca Zuccolo
é Psicólogo formado pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP). Tem formação em Neuropsicologia Clínica e de Pesquisa pelo Instituto de Psiquiatria do Hospital das Clínicas da Faculdade de Medicina da USP (IPq HC-FMUSP). Especialização em terapia comportamental pelo Núcleo Paradigma de Análise do Comportamento. Mestrado em Psicologia Experimental pelo Instituto de Psicologia da USP. Doutorando em Psicologia Experimental no Instituto de Psicologia da USP. Atua como terapeuta comportamental e neuropsicólogo.