Em “Direito à loucura“, artigo da Coluna Desha desta semana, o colunista Paulo Kohara faz um relato de sua experiência como psicólogo junto à Defensoria Pública do Estado de São Paulo, sublinhando a importância do atendimento atendimento interdisciplinar. Com a chegada de psicólogos num ambiente prioritariamente constituído pelo saber jurídico, criou-se possibilidades para melhor compreender e atender as demandas daqueles que passam por algum tipo de sofrimento mental e que, muitas vezes reduzidos sob o rótulo da loucura, ficam à margem da vida social e se veem privados de seus direitos de exercício da cidadania. Escutar o que o outro tem a dizer, em sua “diferença radical é um desafio tremendo”, uma defesa necessária dos “direitos das pessoas em sofrimento mental em ter um tratamento adequado” e “uma conquista civilizatória de toda a sociedade”.
“Meu nome é Princesa Daiana. Não sei porque estou falando com um psicólogo, eu preciso é de um advogado. Só quero que o pai do meu filho reconheça a paternidade da criança e pague a pensão! Ele é poderoso, com certeza comprou todo mundo aqui! O senhor sabe né, está aqui a foto dele no jornal!” “Como a senhora o conheceu?” “Numa festa, estava trabalhando de garçonete e ele se interessou por mim. O senhor não acredita, né? Mas é porque eu tô assim desse jeito… o senhor não sabe como são esses poderosos! Roubaram minha imagem!” “Como assim?” “Fui várias vezes na delegacia, mas eles não me ajudam! Tá vendo essa foto aí no meu documento? Não sou eu! Mudaram! Ficam falando que sou eu, mas nem meu nome nem meu rosto são assim! Na verdade, [retira um recorte de revista] eu sou assim. Ou era, antes de me roubarem… inclusive quero que vocês me ajudem nisso também, quero processar quem roubou minha imagem! Você também não acredita…” “Acredito no que a senhora me fala, só que talvez não consiga ajudar em tudo que me pede. Infelizmente o Direito nem sempre tem as respostas que as pessoas procuram…” “Mas você acha que pode me ajudar?” “Talvez, talvez não… mas farei o que estiver ao meu alcance. Me conte mais sobre esses problemas, tem mais alguém que pode nos ajudar com isso?”.
As queixas da Princesa Daiana condensam algumas das muitas histórias que ao longo dos últimos 9 anos foram compartilhadas comigo em minha atuação na Defensoria Pública do Estado de São Paulo. O que pode parecer algo anedótico quando deslocado de contexto, esconde um intenso sofrimento. Primeiramente pessoal, da pessoa que se esforça em representar seu sofrimento sem para isso ter o respaldo de uma realidade compartilhada com o seu meio social. Mas também histórico e compartilhado, considerando que sob signo da loucura aprisionamos e matamos milhares de pessoas num passado não muito distante e que insiste em nos assombrar. Apenas no Colônia, como é chamado o maior hospício do Brasil, cerca de 60.000 brasileiros morreram entre 1930 e 1980, comendo ratos, bebendo água de esgoto ou urina, dormindo sobre capim, sendo espancados e violados (ARBEX, 2013)(1). Como destaca Eliane Brum “É preciso perceber que nenhuma violação dos direitos humanos mais básicos se sustenta por tanto tempo sem a nossa omissão, menos ainda uma bárbara como esta” (Idem, p. 15). Em detrimento disso, a “nova” diretriz de atendimento à saúde mental(2) do atual governo retoma as internações em hospitais psiquiátricos e o financiamento público para a compra de máquinas de eletrochoque.
Mas nem tudo são espinhos. A Lei Complementar Federal nº 80, de 12 de janeiro de 1994(3), passou a prever, desde 2009, o atendimento interdisciplinar como uma das funções da Defensoria Pública. A partir dessa sucinta previsão normativa, uma pequena, mas revolucionária mudança na relação entre loucura e justiça, e da qual sou testemunha, começou a ser operada.
Ao cotejarmos a inserção do atendimento interdisciplinar no âmbito da Defensoria Pública com sua função institucional de promover, prioritariamente, a solução extrajudicial dos litígios(4), encontramos terreno fértil para produção de novos conhecimentos e de novas formas de intervenção no campo do acesso à justiça. Nesse novo contexto, a escuta própria do campo psi é convocada a compor um atendimento interdisciplinar, que apesar de se manter dentro de um contexto jurídico, torna possível incidir sobre questões complexas presentes no tecido social e até então quase inacessíveis. Demandas que, de um lado, não encontrariam respostas nos tribunais – seja pela limitação do Sistema de Justiça em apresentar solução para o problema, seja por sua limitação em compreender o problema que lhe é apresentado(5) – e que, de outro, não aportariam nos serviços de saúde mental – uma vez que o estatuto de realidade dessas demandas não é questionado pelos interessados, o que por consequência os impede de considerar a utilidade de uma atenção psi.
É evidente que tal revolução não ocorre sem resistências. Antes da implantação desse atendimento interdisciplinar, uma questão problemática para a instituição era a presença recorrente de pessoas com demandas notoriamente delirantes e, por consequência, juridicamente inviáveis. Dois elementos que caracterizavam a visão predominante acerca do problema eram a compreensão de que o atendimento necessário a essas pessoas seria o de saúde mental, e não o jurídico, e que a presença dessas pessoas impactava negativamente na dinâmica do trabalho ao restante da população. Reforçavam esse entendimento episódios esporádicos de conflitos que tinham como questão de fundo a condição de saúde mental dos cidadãos, e que mobilizavam discussões não só acerca da qualidade do atendimento oferecido, mas também quanto à segurança dos trabalhadores. Assim, a expectativa inicial com a entrada de psicólogos na instituição é que esses profissionais pudessem se ocupar, exclusivamente, dessa demanda, tomando as providências necessárias para o devido encaminhamento desses casos ou, ao menos, para sua adaptação ao contexto jurídico.
No entanto, essa expectativa encontrou um conjunto de psicólogos/as ingressantes(6) que, majoritariamente, tiveram forte influência do movimento antimanicomial em sua formação. Cabe relembrar que a Psicologia, como ciência e profissão, teve um importante papel na reforma psiquiátrica brasileira, seja por meio de sua contribuição ao arcabouço teórico desenvolvido para a construção de uma rede de atenção em saúde mental sustentada em serviços diversificados e comunitários, seja por meio da atuação profissional – quando não militante – de psicólogos/as inseridos na rede pública de saúde. Aos leitores pouco familiarizados com o tema é importante pontuar que o processo histórico que se denomina reforma psiquiátrica, em âmbito mundial, nasce da crítica à inefetividade do paradigma clássico da psiquiatria, cuja estrutura assenta-se na tipificação das doenças mentais e cujo tratamento baseia-se em um modelo hospitalocêntrico e asilar (compatível com o Colônia, mas também com a expectativa da Defensoria Pública antes do ingresso de seu quadro multidisciplinar). O corolário da crítica ao modelo asilar de tratamento da loucura passa a ser o desafio da inserção do louco na sociedade.
Sem a pretensão de realizar uma análise pormenorizada desse ponto(7), é importante destacar da reforma psiquiátrica brasileira sua característica relacionada à cidadania do louco. Historicamente, as discussões travadas no âmbito da reforma brasileira, no final da década de 70 e décadas de 80 e 90, convergem com o processo de redemocratização do país. Segundo Pedro Gabriel Delgado(8) “no Brasil da restauração democrática, sua característica [da reforma psiquiátrica brasileira] dominante é o respeito da cidadania de sujeitos obrigatoriamente tutelados. O desafio paradoxal da cidadania interditada. (…). Embora trazendo exigências políticas, administrativas, técnicas – também teóricas – bastante novas, a reforma insiste num argumento originário: os ‘direitos’ do doente mental, sua ‘cidadania’”.
Assim, enquanto os/as bacharéis em direito demandavam dos/as psicólogos/as seu saber quanto aos aspectos psicodinâmicos e psicopatológicos do indivíduo, estes passam a responder a essa demanda, paradoxalmente, com um discurso sobre direitos, direitos do doente mental à sua cidadania. Antes de poder lutar para garantir à pessoa em sofrimento psíquico seu direito à cidadania, à própria Defensoria se colocou o desafio de não a violar.

Ocorreu então uma reconfiguração do atendimento inicial prestado pela Defensoria Pública Estadual em São Paulo. Casos que antes eram reiteradamente denegados sob alegação de inexistência de demanda jurídica, passaram a encontrar lugar para compreensão de suas demandas. O resultado dessa ampliação do repertório de escuta e interpretação da instituição para as demandas da população e em especial para esse público estigmatizado pela suspeita do transtorno mental, permitiu identificar, em parte significativa desses casos, demandas jurídicas que antes passavam despercebidas. E mesmo quando essas demandas jurídicas são de fato inexistentes, esses usuários do serviço passaram a ser tratados com a mesma atenção de todos os demais que também, muitas vezes, chegam à Defensoria com demandas não judicializáveis – favorecendo inclusive (mas não obrigatoriamente) eventual encaminhamento a rede de saúde mental. Com a intervenção interdisciplinar a instituição passa a se adaptar à maneira como as pessoas traziam seus problemas, ao invés de impor que elas conseguissem organizar seus problemas ao código da instituição(9). A barreira comunicacional antes estabelecida entre o que a pessoa era capaz de expressar e o que o operador do direito era capaz de compreender passou, aos poucos e a cada caso concreto, a se tornar mais permeável. A existência de um diagnóstico de transtorno mental deixou de ser, em si, um limitador para que esforços fossem empreendidos na compreensão da demanda. Ao alterar o foco da identificação do louco, para a identificação de suas demandas por direitos, amplia-se o direto à cidadania, institui-se o direito à loucura.
A mudança de concepção atingiu nível normativo, e o regramento institucional(10) hoje comporta o atendimento da pessoa em sofrimento mental para além dos “portadores de transtorno mental” previsto na lei. Ao aludir o usuário em sofrimento mental, a referência inclui o sujeito que vive a experiência de sofrimento e que vivendo essa experiência tem comprometida, em determinado momento, a possibilidade de resolução autônoma de seus conflitos – e isso independentemente da definição de uma doença mental que lhe pudesse ser atribuída por uma avaliação psiquiátrica. A definição alinha-se à terminologia utilizada no campo da saúde mental e atenção psicossocial (AMARANTE, 2011)(11), destacando que a ideia de sofrimento nos remete a uma experiência vivida de um sujeito. A compreensão da loucura como fenômeno historicamente construído(12), nos aponta que a dificuldade para a inserção social do indivíduo rotulado como doente mental vai muito além da remissão de seus sintomas. O que ocorre é que muitos desses sintomas somente trazem prejuízo e sofrimento ao indivíduo na medida em que geram sua segregação e estigmatização social – segregação que lhe priva inclusive do acesso à justiça.
Escutar a diferença radical é um desafio tremendo, principalmente quando aquele que escuta não tem em seu entorno um enquadre institucional que o obrigue a fazê-lo. Mas garantir a escuta da diferença radical em uma defensoria, em um tribunal, em uma delegacia, em uma escola, num CRAS, numa loja, enfim em todos os lugares, é onde efetivamente se constrói a cidadania. Defender efetivamente os direitos das pessoas em sofrimento mental em ter um tratamento adequado, de ter acessos a bens e serviços públicos e comunitários, de não serem discriminadas ou estigmatizadas, é fundamental para o exercício de sua cidadania e uma conquista civilizatória de toda a sociedade. Afinal, como fez difundir o estrondoso sucesso do blockbuster Coringa (2019)(13), sucesso de bilheteria no último mês, a diferença entre saúde e doença mental pode ser apenas um dia ruim. E temos tido muitos deles nos últimos tempos.
NOTAS DE RODAPÉ
(1) Arbex, Daniela.Holocausto brasileiro. São Paulo: Geração Editorial, 2013.
(2) NOTA TÉCNICA Nº 11/2019-CGMAD/DAPES/SAS do Ministério da Saúde, que traz como assunto esclarecimentos sobre as mudanças na Política Nacional de Saúde Mental e nas Diretrizes da Política Nacional sobre Drogas. Disponível em: http://webcache.googleusercontent.com/search?q=cache:http://pbpd.org.br/wp-content/uploads/2019/02/0656ad6e.pdf.
(3) http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/lcp/Lcp80.htm.
(4) Art. 4, inciso II, Lei Complementar nº 80, de 12 de janeiro de 1994, http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/lcp/Lcp80.htm.
(5) Uma discussão mais pormenorizada sobre as potencialidades da intervenção multidisciplinar e também sobre os limites da intervenção psicossocial nessas questões onde o direito não alcança uma resposta pode ser encontrada em Almeida, Marilia Marra de. O torto e direito: desafios do trabalho interdisciplinar na Defensoria Pública. Em: Revista da Defensoria Pública. Ano 5 – n.1 – 2012 – ISSN 1984-283X. p. 71-9.
(6) Juntamente com os/as psicólogos/as, ingressaram na instituição assistentes sociais, figuras igualmente importantes para mudança de paradigma institucional que descrevemos. No entanto, para os fins deste ensaio, nos centraremos na perspectiva da psicologia.
(7) Em relação à reforma psiquiátrica brasileira, sugere-se a leitura de Amarante, Paulo (org.) Loucos pela vida: a trajetória da reforma psiquiátrica no Brasil. Rio de Janeiro, SDE/ENSP. 1995 e Venancio e Cavalcanti (orgs.), Saúde mental: campo, saberes e discursos. Rio de Janeiro, Edições Ipub-Cuca. 2001.
(8) Delgado, Pedro Gabriel. As razões da tutela: psiquiatria, justiça e cidadania do louco na Brasil. Rio de Janeiro, Te-Corá. 1992.
(9) Como reconhecimento dessa intervenção, em 2012, na quinta edição do Prêmio Justiça para Todos, criado pela Ouvidoria-Geral da Defensoria Pública de São Paulo para reconhecer publicamente ações de relevância social e motivar ações que contribuam para o acesso à justiça em benefício da população, o psicólogo Mathias Glens recebeu menção honrosa pelo atendimento realizado junto a Usuário com transtorno mental, que procurava a assistência jurídica desde antes da criação da Defensoria Pública em São Paulo, quando esta era prestada pela Procuradoria de Assistência Judiciária, mas cuja demanda só foi identificada após acolhimento multidisciplinar – http://www.defensoria.sp.gov.br/dpesp/Default.aspx?idPagina=3219.
(10) Deliberação CSDP n° 219, que regulamenta as hipóteses de atendimento pela Defensoria Pública ao usuário em sofrimento ou com transtorno mental, acessível em https://www.defensoria.sp.def.br/dpesp/Repositorio/0/Documentos/DELIBERA%c3%87%c3%83O%20CSDP%20N%c2%ba%20219%20-%20transtorno%20mental.pdf.
(11) Amarante, Paulo. Saúde mental e atenção psicossocial. Rio de Janeiro: Editora Fiocruz, 2011, 3ª edição, revisada e ampliada.
(12) Para o início de um aprofundamento quanto à análise da loucura como fenômeno historicamente construído recomenda-se a leitura de Foucault, Michel (1993). História da loucura na idade clássica. São Paulo, Perspectiva.
(13) Coringa. Direção Todd Phillips. EUA/Canadá: Warner Bros., 2019. (122 min.).
COMO CITAR ESTE ARTIGO| KOHARA, Paulo. Direito à loucura. Coluna Desha, 04 de nov. de 2019. Disponível em: <https://coluna.desha.com.br/direito-a-loucura-paulo-kohara>
Quem escreve

Paulo Kohara
Doutor em psicologia pela USP, com estágio doutoral na Université Sorbonne Paris-Cité - Université Paris XIII. Psicólogo na Defensoria Pública do Estado de São Paulo. Membro do Grupo de Pesquisa em Direitos Humanos, Democracia, Política e Memória do Instituto de Estudos Avançados (IEA-USP).