Um tema bastante controverso, porém a meu ver que exige constante discussão e atualização, é o uso da Eletroconvulsoterapia ou ECT, como é mais comumente conhecida, na prática psiquiátrica atual. Tal necessidade surge do fato de que quando falamos em ECT o estranhamento é a regra geral. Muito frequentemente a população geral, médicos de outras especialidades, psicólogos, outros profissionais de saúde, gestores públicos e a mídia ainda associam a prática da ECT a métodos de tortura e crueldade.
Já adianto que a Eletroconvulsoterapia é ainda hoje em dia uma importante ferramenta de tratamento psiquiátrico em diversos casos, sendo em alguns deles a primeira escolha. Ela faz parte de um arsenal chamado “tratamentos biológicos em psiquiatria”, em que estão agrupados outros recursos terapêuticos, como a recentemente muito estudada Estimulação Magnética Transcraniana (EMT). Os tratamento biológicos são assim chamados pois seus efeitos não dependem de medicações e resultados farmacológicos, mas de alterações neurofisiológicas geradas diretamente, a partir de um estímulo, no caso da ECT, a partir de um estímulo elétrico. Este estímulo elétrico, aplicado em regiões adequadas do crâneo, além de causar uma crise convulsiva, gera os efeitos terapêuticos necessários a partir de alterações múltiplas, complexas e até hoje em dia não totalmente elucidadas dentro da neurofisiologia cerebral.
Paremos um instante; se o objetivo deste texto de hoje é desmistificar o uso do ECT dentro da psiquiatria moderna devemos nos ater a algumas perguntas. Como foi descoberto que uma carga elétrica gerando uma crise convulsiva poderia ser útil no tratamento de alguns quadros psiquiátrico? Para isso, voltemos nossos olhares à história da medicina moderna. Na década de 1930, um médico húngaro chamado Meduna, em estudos de laboratório do tecido cerebral de pessoas que haviam falecido e eram portadoras ou de esquizofrenia ou de epilepsia, notou que existia um comportamentos oposto de células chamadas “células da glia” entre as duas doenças: na esquizofrenia havia uma diminuição da glia, enquanto na epilepsia existia uma proliferação da mesma. Surgia assim uma hipótese, de forma muito primária, de que crises convulsivas poderiam tratar a esquizofrenia. Naquela época não existia nenhuma medicação considerada eficaz para quadros psicóticos (medicamentos antipsicóticos surgiriam apenas 20 anos depois), então Meduna iniciou testes com pacientes portadores de esquizofrenia induzindo crises convulsivas com injeções de cânfora. Para surpresa geral, os resultados foram muito positivos, com pacientes antes em estados catatônicos e internados por anos voltando para suas casas e convívio familiar.
A partir de 1938, dois médicos italianos em Roma, Ciarleti e Bini, desenvolveram a técnica de induzir crises convulsivas a partir de correntes elétricas aplicadas na região cefálica, a Eletroconvulsoterapia. Esse avanço foi de extrema importância, já que estratégias de indução de crises convulsivas por medicamentos, como a cânfora, se mostravam muito mais arriscadas a complicações graves e eventualmente fatais.
Entretanto, porque a ECT ainda é usada atualmente, no século XXI, se temos atualmente um arsenal de medicamentos infinitamente maior que nossos colegas do início do século XX? Tenho uma resposta simples para isso: porque existem doenças mentais graves que infelizmente não respondem mesmo às terapêuticas farmacológicas mais modernas. Porém esta não é a única resposta à pergunta anteriormente feita, já que a ECT não está indicada unicamente a casos refratários.
Além de muito utilizada para casos de transtornos de humor (depressão unipolar, transtorno afetivo bipolar) e de transtornos psicóticos (esquizofrenia, transtorno esquizoafetivo) que não responderam aos vários tratamentos disponíveis hoje em dia, a ECT possui indicações clássicas e muitas vezes como primeira escolha de tratamento, como, por exemplo, nas já citadas anteriormente catatonias (quadros de intenso negativismo, estupor, podendo estar presente em quadros psicóticos ou em transtornos de humor), onde a eletroconvulsoterapia entra como primeira escolha de tratamento, com resultados fantásticos! Transtornos mentais graves em idosos e gestantes, muito frequentemente, podem ter como indicação de tratamento a ECT mesmo antes de se tentar várias outras medicações, especialmente pelo risco que estas podem apresentar para esse grupo específico de pessoas, sendo a eletroconvulsoterapia muitas vezes mais segura que o uso constante de alguns fármacos.
A história da humanidade não foi justa com essa ferramenta tão importante ao tratamento psiquiátrico. É sabido que regimes totalitários, ao longo de seu reinado obscuro, se utilizaram não só da ECT como da própria Psiquiatria para aplicar em seus desafetos políticos e ideológicos torturas desumanas. Telenovelas e filmes também não têm sido tolerantes a ECT, a retratando, mesmo recentemente, como instrumento de tortura, realizada sem critérios e sem oferecer conforto ao paciente. Preciso aqui desmentir equívocos frequentemente repetidos, perpetuados por ideologias retrógradas e esvaziadas.
A ECT não está indicada para todos os casos de tratamento psiquiátrico, e quando indicada por um Médico Psiquiatra é apenas realizada com consentimento do paciente ou de algum responsável da família, quando aquele não pode responder por si. A partir disso, o paciente será submetido a exames clínicos e cardiológicos para verificar a possibilidade de realização do procedimento. Caso esteja tudo bem, o paciente receberá a aplicação da ECT apenas em ambiente hospitalar e sob anestesia, ou seja, além do Psiquiatra especializado em ECT é necessário que um Médico Anestesista esteja presente e acompanhando o procedimento. Busca-se com a anestesia o conforto do paciente, humanizando assim o tratamento.
A eletroconvulsoterapia não é, via de regra, um tratamento de manutenção. Busca-se com ela, a partir de 10 a 12 sessões (distribuídas geralmente em 2 sessões por semana), a melhora aguda da doença, e posteriormente a estabilização da mesma a partir de medicamentos. Existem casos de pacientes que não conseguem ter a ECT suspensa, apenas diminuída (uma vez a cada 15 dias ou mesmo uma vez por mês), mas esses são a exceção. O que vemos na prática clínica é um ótimo recebimento desta importante ferramenta terapêutica tanto por pacientes quanto por seus familiares, e isso está claramente relacionado ao bem que ela pode gerar quando corretamente indicada e realizada. Não podemos, assim, negar a história, mas não culpemos os agentes errados pelo mal realizado.
Quem escreve

Leonardo Peroni de Jesus
é Médico Psiquiatra pela Faculdade de Medicina da USP, exerce atividades clínicas em serviços públicos e privados, com interesse em tratamento de transtornos psicóticos e em psicopatologia fenomenológica. leoperonidejesus@gmail.com
Marcelo Feijó
ago 24, 2018 at 16:06
Parabéns pelo artigo e principalmente pela coragem em publica-lo.
CONTINUANDO DIÁLOGO SOBRE ECT (ELETROCONVULSOTERAPIA) | Rosana de Freitas - Coluna | Desha
set 3, 2018 at 17:04
[…] Dando continuidade as discussões sobre a eletroconvulsoterapia, após o excelente apanhado histórico e de suas principais indicações realizado pelo colega Dr. Leonardo… […]