O trabalho da clínica envolve, fundamentalmente, escuta. Parece-me, inclusive, que a priorização do ato de escutar é um ponto em comum entre as múltiplas e distintas abordagens em psicologia. Contudo, a escuta não é um ato passivo – especialmente a escuta clínica – e diferentes linhas de trabalho irão configurar diferentes modos de escutar. Eu, cá da minha perspectiva singular de mundo, tenho pensado muito sobre como o ato de escutar, ao contrário do que nossa cultura centrada no discurso faz parecer, não está voltado apenas ao encadeamento lógico das palavras, mas sim a toda uma configuração de campo que só é passível de ser percebida quando a escuta envolve todo o corpo e não está apenas restrita à audição.
No trabalho com eutonia – uma prática de educação somática voltada à regularização do tônus corporal – esta escuta muitas vezes acontece literalmente a partir do tato. Por exemplo, envolvo com minhas mãos a cintura escapular¹ do aluno, em um toque sutil, e permaneço atenta a esta região e também a seu corpo como um todo. E acompanho os possíveis e involuntários movimentos de regularização tônica que acontecem a partir do encontro silencioso entre minha presença e a presença do aluno, ambos com a atenção voltada para seu espaço corporal. Algo que aprendi nestes anos em que pratico a eutonia é que, quanto mais silêncio houver em meu próprio espaço corporal, maior a amplitude da minha escuta.
Esta mesma constatação serve para a clínica que – a princípio – parece mais voltada para o verbo, para a fala. Quanto maior meu silêncio interno, mais me sinto disponível para embarcar nos movimentos afetivos do outro. Mas não é tão fácil estar nessa qualidade de silêncio – vivemos em um mundo excessivamente ruidoso, em todos os sentidos e a vida pessoal de cada um tem suas próprias turbulências. Curiosamente – talvez paradoxalmente – me parece que a possibilidade do silêncio vem de um respeito pelos próprios ritmos, inclusive aqueles mais turbulentos. Ao escrever isso, me vem à cabeça a imagem de um surfista que, atento aos movimentos do mar, consegue surfar em suas ondas, ao invés de ser engolido por elas.
E aqui adentramos em um tema que tenho observado muito em minha clínica – a possibilidade de saúde que se abre quando aprendemos a escutar e aceitar os nossos ritmos. Não é fácil, são muitos anos de uma educação corporal e uma cultura que nos dessensibilizam para essa escuta. Aprendemos que devemos suprimir as nossas necessidades corporais, em prol seja da obediência, da conformidade às normas, da produtividade ou da pacificação dos conflitos. Esta dessensibilização leva a um outro tipo de silêncio, que não é este silêncio poroso, carregado de presença, atento, mas um silêncio surdo, onde não se escuta nada. Às vezes construímos paredes internas para não ter de lidar com a intensidade dos nossos afetos, com nossa própria turbulência. Esses afetos então, tal qual água, podem acumular-se até romper a parede, causando estragos ao liberar sua energia acumulada. Outras vezes, não chegamos a construir paredes, mas simplesmente ignoramos os apelos do nosso corpo. E, em algum momento, adoecemos, podendo ser este adoecimento um último grito do corpo, apelo para que estejamos atentos à forma como estamos conduzindo nossa existência no mundo e para que respeitemos nossa singular temporalidade.
E cá tem outro ponto com o qual tenho entrado em contato: os ritmos são todos muito diferentes. Às vezes, de uma sessão a outra sinto que se eu fosse um rádio, sintonizando frequências distintas. Essas diferenças guardam belezas e desafios. Desafios porque habitamos um mundo em comum e estamos sempre precisando sintonizar estes ritmos para estar em relação. Belezas porque achar ritmo em comum com o outro nos coloca em um movimento único de criação de sentidos, uma vez que dois ritmos distintos, quando se harmonizam, geram um terceiro ritmo que não pertence a uma ou outra corporeidade, mas ao encontro. Este fenômeno é visível quando duas ou mais pessoas dançam juntas, ou então no encontro do surfista com a onda do mar.
E, assim como a música só é possível pelos intervalos de silêncio entre uma nota e outra, os encontros também me parecem possíveis pelos espaços silenciosos em nossos corpos, fissões, aberturas onde a diferença trazida pelo outro pode fazer vibrar outros tons, outras possibilidades rítmicas. A escuta tem se configurado assim para mim: como um ato que envolve todo o corpo – seus espaços internos, pele, ossos músculos, ritmos sanguíneos e respiratórios, uma profunda atenção aos afetos. Por isso volto a reafirmar a importância de um trabalho com o corpo – que me parece abrir vias para que possamos encontrar nossos espaços de silêncio e o respeito aos nossos próprios ritmos, aos ritmos dos outros.
Nota de rodapé
¹ Conjunto ósseo articulado de escápula e clavícula, que sustenta a articulação do ombro.
Quem escreve

Alice Vignoli Reis
é psicóloga pela USP, mestre em psicologia pela UFRJ e doutoranda em psicologia nesta mesma universidade. Possui formação profissional em Eutonia pelo Núcleo Berta Vischinivetz. Pesquisadora associada ao NEIFECS – Núcleo de Estudos em Fenomenologia e Clínica de Situações Contemporâneas. Desde a graduação tem se sentido intrigada com a questão da superação da cisão mente/corpo e busca aprofundar-se nela. Atualmente dá aulas como professora substituta no curso de graduação em psicologia da UFRJ e descobriu na docência uma paixão bandida, daquelas que dão muito prazer e muito trabalho. Atua também como psicóloga clínica, no Rio de Janeiro, a partir de uma perspectiva que entende o sujeito como corpo situado no mundo. alice.v.reis@gmail.com.
Paula Roberta Senci
mar 26, 2019 at 23:07
Muito bom o texto. Eu acho interessante também as formas que nos comunicamos e como o sentir sempre se manifesta. Não consigo imaginar uma separação entre o corpo e a mente. Talvez falte o se reconhecer enquanto um ser, dotado de corpo também…..gostei dos silêncios que se referiu e me fez lembrar das medicaçôes que camuflam os gritos de socorro.