Me fala de novo, aquilo que você me falou semana passada. Quando você me falou aquilo, eu me acalmei, consegui ficar bem. No dia que vim fiquei bem, mas no dia seguinte já voltei a ter compulsão… Comi a geladeira inteira. Você pode repetir o que você me disse? Às vezes acho que preciso vir aqui todo dia, porque quando saio fica mais difícil, dá o vazio de sempre e daí eu como e como e como. Como era mesmo aquilo que você me falou?..Repete? – T.
Minhas palavras para T. são como aquilo que consome, muitas vezes compulsivamente: a comida, as drogas e os parceiros sexuais podem somente satisfazê-la de maneira provisória. Às vezes repete o que digo duas ou três vezes, para que possa “decorar” o que falei. Isto acontece também com outras palavras: T. sabe de cor muitas passagens de poesia, livros que gosta e músicas. Sou por vezes surpreendida com frases que disse no começo de seu atendimento. Sua busca por mais sessões ou mais contato telefônico é marca importante da transferência. Em nossos encontros há outras também exigências: T. me avisa na entrevista que se recusa a deitar no divã porque precisa me olhar. Este olhar é marcante, perscrutador, e qualquer alteração em meu modo de vestir ou aparência são observados com intensidade. Sentada na poltrona, T. por vezes me “come com os olhos”.
Sinto como se este consumo das palavras e dos corpos, incluindo o meu, não passa pela digestão: T. não consegue, muitas vezes, me dizer de histórias ou sentimentos que viveu com os homens com que sai, tampouco dizer se a comida estava saborosa, se as drogas foram divertidas ou se o que falei a fez sonhar.
Como pensar de que forma as palavras e nosso atendimento se relacionam com o modo de estar no mundo de T.? Afinal, meu papel enquanto analista é levar em consideração o que ocorre transferencialmente entre nossa dupla no consultório para procurar apreender como T. se relaciona com os outros e consigo própria. Procurarei aqui esclarecer o que entendo como incorporação, conceito para mim bastante elucidador da vivência transferencial. Na demanda constante por mais atendimento T. se mostrava inconsolável com minha ausência. Havia grande dificuldade de sua parte em suportar que podíamos nos separar, e minhas palavras precisavam ser repetidamente ditas porque não podiam ficar com ela: era necessário decorá-las como um salmo para que algo restasse. Torok e Abraham (1995) exemplificam o conceito de “vazio da boca”, quando a criança é forçada a esperar pela satisfação do leite materno. Esta espera garante que seja perceptível a existência de outro sujeito, ou seja, cria-se a ideia de separação. É esse vazio da boca que é preenchido pela paixão por um objeto a ser incorporado e não pela possibilidade do sujeito preencher-se de palavras que possam representar esse vazio, transformando-o em ausência. O vazio torna imperativa a cura de si próprio, em uma recuperação artificial dos objetos perdidos.

Esta operação pode ser compreendida como uma fantasia herdeira de uma perda sofrida pelo psiquismo: essas fantasias de incorporação se relacionam com introduzir algo no corpo, nele deter ou expulsar determinado objeto, seja inteira ou parcialmente. A incorporação pode ser entendida como um modo particular de relação com o objeto, revelando o desejo de assimilar para si o que dito objeto apresenta de bom. Ela tem como primeiro modelo o objeto alimentício e manifesta uma relação entre as pulsões de vida e as de morte, bem como o desejo de união e destruição (Fédida, 1985). Elas têm como finalidade recompor a perda sentida, de maneira mágica. É para que a perda não seja “engolida” que se imagina engolir o que foi perdido na forma de objeto.
A cura mágica por incorporação dispensa do trabalho doloroso da recomposição. Absorver o que vem a faltar sob forma de alimento, imaginário ou real, no momento em que o psiquismo está enlutado é recusar o luto e suas consequências, é recusar introduzir em si a parte de si mesmo depositada no que está perdido, é recusar saber o verdadeiro sentido da perda, aquele que faria com que, sabendo fossemos outro, em síntese é recusar sua introjeção. A fantasia de incorporação denuncia uma lacuna no psiquismo, uma falta no lugar preciso em que uma introjeção teria ocorrido. (Torok e Abraham, 1995. P. 245).
Ao contrário da incorporação a introjeção é um mecanismo onde há aprendizado a partir da ausência. Ferenczi, o criador do conceito em 1909, entendia-o como um processo – ao contrário de uma fantasia, esta correspondente à incorporação. Este processo é responsável por um alargamento do ego cuja condição por excelência era designada no amor de transferência. Para o autor este conceito pode ser entendido “como a extensão do mundo externo do interesse, autoerótico na origem, pela introdução dos objetos exteriores na esfera do ego. Insisti nessa introdução para sublinhar que considero todo amor objetal (ou toda transferência) como uma extensão do ego ou introjeção” (Ferenczi [1912] 1991). Assim como a incorporação, a introjeção é para Ferenczi funcionamento constitutivo dentro do aparelho psíquico. É através da introjeção do objeto que o psiquismo pode lançar mão das representações. Esse mecanismo é, portanto, responsável pela linguagem e pelo processo de subjetivação.
Fernandes (2006) coloca que a introjeção e a incorporação “(…) fazem parte da forma como o bebê apreende o mundo. É esse modo de apreensão que vai constituindo a estruturação do psiquismo com seus modos de proteção contra as ameaças internas e externas” (p. 262). Não há diferenciação para o bebê no começo da vida se o que sente vem de dentro ou de fora de seu corpo. É quando lhe é possível distinguir uma percepção objetiva da vivência subjetiva que se pode começar a procurar uma forma de comunicação entre o que se passa dentro e fora de si. Revelam-se então duas saídas ao bebê: expulsar para fora o que é desagradável e também absorver para dentro o que está no externo.
Portanto, a incorporação e introjeção são funcionamentos não necessariamente da ordem do adoecimento: fazem parte do início do aparelho psíquico. Contanto, concordo aqui com Fernandes (2006): elas aparecem com frequência em casos patológicos onde há uma fixação excessiva na primariedade.
Para Torok e Abraham (1995), apesar da introjeção e incorporação relacionarem- se com fazer existir dentro do sujeito o objeto, existe grande diferença entre os dois. Na introjeção o sujeito pode aprender a preencher com palavras o vazio da boca. Esse preenchimento aponta para uma possibilidade de substituir a presença materna e dar lugar às novas introjeções. Primeiro, a boca vazia, depois a ausência dos objetos viram palavras e as palavras podem se converter em outras palavras. O vazio acha escoamento na sua falta através da comunhão com uma comunidade falante, com a linguagem que se originou de uma comunhão de bocas vazias.
A passagem da boca vazia através da ausência não é possível na incorporação. Neste mecanismo a boca não pode articular certas frases ou enunciar palavras por algum motivo, então o inominável será tomado pela própria coisa. Esta mesma boca não pode nutrir-se de palavras trocadas com outra pessoa e esta última será tomada como objeto na fantasia a ser incorporado no lugar do que não tem nome. Não vindo as palavras para preencher o vazio, há uma introdução desesperada de uma coisa imaginária nesse lugar: uma tentativa de supressão por um alimento ilusório que preencha uma lacuna.
Desta forma, o vazio da boca acaba sendo preenchido pela paixão por um objeto concreto e substancial a ser incorporado. Joyce McDougall (2000) entende que a incorporação relaciona-se com um objeto primário que nunca foi reconhecido como separado do eu, ou seja, nunca se colocou como não pertencente ao ego. Como consequência, não foi possível que houvesse um luto realizado, simbolizado e introjetado. Esse objeto primário é desesperadamente procurado no mundo externo. A angústia desta perda de objeto invade e imobiliza ao ego, levando o sujeito a buscar na incorporação de objetos o alívio que é incapaz de sentir sozinho. O inconveniente desta busca é que, quando achado um objeto digno de incorporação, esta operação deve ser repetida indefinidamente. Com mais sessões, mais palavras decoradas, mais parceiros, mais drogas…
Há uma postura proposta que encontramos disseminada já a partir de Freud algo que diz do lugar do analista enquanto uma superfície mais neutra e menos intensa em sua presença psíquica e convicções pessoais. Freud em “Recomendações aos médicos que exercem a psicanálise” [(1912) 2010] afirma que o analista – à semelhança do cirurgião – seria mais bem sucedido se tivesse apenas um objetivo “levar a bom termo a sua operação, do modo mais competente possível” (p. 155). Esta competência estaria ligada com sua capacidade de suspender os afetos, inclusive àquele referente ao seu desejo de cura do paciente. Desta maneira, ambos se beneficiariam uma vez que o analista seguiria preservado em sua vida afetiva e o paciente usufruiria da melhor ajuda possível quando o desejo de ajudar é suspenso. Existe um espaço na transferência onde os conteúdos advindos da fala, das representações e do corpo do paciente podem circular livremente, sem a intervenção excessiva por parte do analista em moldá-los ou dar um destino específico de seu desejo em relação a eles. É estando lá neste lugar de abstinência ou neutralidade que há liberdade para que o que emerge do paciente possa encontrar uma ressonância no analista: senão haveria apenas a modulação. Fédida coloca que ao criar a ausência a partir da presença do clínico é que se pode criar a linguagem e o sonho na clínica:
(…) não apenas é da origem das manifestações que entram semiologicamente na nosografia das neuroses e das psicoses, mas, além disso, dir-se-ia que está em estreita relação com a produção da alucinação negativa inerente ao sonho e a transferência. Não seria a alucinação negativa, sob este prisma, o poder de ‘fazer desaparecer’ alguém a partir de sua própria presença? Não seria, como diz Freud, a capacidade física do psiquismo de ausentar o outro em sua presença, ou ainda, de tornar sua ‘pessoa transparente como o ar’ (Fédida, 1996. p. 139)
Em outras palavras, para que haja produção psíquica e o analista esteja na posição de interlocutor, é necessário que se possa criar a ausência. Somente se o clínico puder “transparentar-se” é que se torna possível criar a fala e o sonho a que dizem do inconsciente. Ao mesmo tempo, é somente se a ausência puder ser suportada que se escapa da concretude e da presença real, podendo assim buscar e construir caminhos para si mesmo.
Como se pode então criar transparência se o que se é exigido na transferência é a presença maciça do corpo e das palavras? Minha presença no atendimento disparador deste trabalho era vivida como a de um objeto a ser engolido em sua concretude, havendo pouco espaço para a liberdade da associação livre ou escuta flutuante. Sentia como se na transferência houvesse a tentativa de engolimento de algo, para que nada escapasse. Também a presença da paciente na sala era diferente: havia uma massificação do corpo com pouco espaço para uma escuta flutuante mais livre: me pegava por vezes ouvindo seus olhos, suas mãos… Entendo que há nesta tentativa a evitação de que um lapso produtor de sentido pudesse aparecer, onde as palavras (minhas e dela) que fossem fora do controle eram vividas como ameaçadoras.
A possibilidade de transparência que pudesse fazer ressoar as palavras ditas por ambas as pessoas na situação analítica não é muitas vezes encontrada em pacientes como T. A presença e a fala do analista é tomada transferencialmente como portadora de uma concretude objetal. Parece-me que esta objetalidade era necessária para que T. pudesse fazer uso destes dispositivos como fazia uso dos outros objetos investidos de libido de sua vida: incorporando-os repetidamente.
Nos atendimentos como os de T. cabe ao analista descolar-se da teoria onde deve ser uma presença neutra e transparente para o paciente. Acredito que além da minha concretude corporal ser elemento transferencial importante, neste atendimento foi necessário que eu fosse atuante nos encontros. Afirma Magtaz (2008): “O psicoterapeuta deve sentir-se à vontade para recitar uma poesia para o paciente, ou mesmo contar-lhe uma história ou um sonho que teve” (p. 20). Na mesma direção Fernandes (2006) vai além, afirmando que em certos casos é o próprio corpo do analista que deve estar instrumentalizado para o atendimento. Para ela, são os processos transferenciais que permitem a introjeção a partir do acolhimento por parte do analista dos conteúdos, sensações e emoções do paciente para que através de seus corpos haja a reconstrução de sua história libidinal. Foi sendo um objeto digno de interesse que talvez foi possível para T. ensaiar alguns “balbucios” em direção a mim. Percebi que suas primeiras “falas” mais livres eram frequentemente seguidas pela pergunta: “Mas quem disse isso foi você ou eu?”.
É a partir da minha presença concreta que pode se inaugurar a possibilidade de minha ausência. Grudar seu olhar em mim talvez seja o primeiro passo para que T. possa me recriar em seus sonhos, e possivelmente daí poder contar-me deles, em suas próprias palavras. Termino aqui com as valiosas de Pontalis (1991):
Para ouvir, para dizer, é preciso, ao mesmo tempo, que a imagem, em sua presença obnubilante, se apague e permaneça em sua ausência. O invisível não é a negação do visível: está nele, freqüenta-o, é seu horizonte e seu começo. (p. 222).
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
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___________. Sobre a bulimia. Entrevista com Joyce McDougall. In: Brusset, B., Couvreur, C & Fine, A. A bulimia. São Paulo: Escuta, 2003. p. 185-196.
PONTALIS. J-B. Da Fantasia de Recuperação do Objeto Perdido. In :Perder de Vista. Rio de Janeiro: Ed. Jorge Zahar. 1991.
Quem escreve

Adriana Omati
psicanalista, graduada pela PUC-SP, formada em Acompanhamento Terapêutico pelo Instituto A Casa, especializada em Psicopatologia e Saúde Publica pela USP e mestre em Psicologia Clínica pela PUC-SP. A paixão pela escuta e contato humano desde a graduação desaguou na prática clínica, inicialmente no formato de Acompanhante Terapêutica e atualmente em consultório particular. dricaomati@gmail.com