Desde que migrei o consultório para a modalidade on-line, muitas mudanças ocorreram na minha clínica. Uma delas foi começar a atender pessoas do mundo inteiro, de outros países e continentes, com experiências absolutamente diversas e desconhecidas para mim, sobre rede de educação básica, rede de saúde, assistências sociais, etc., com modos diversos de viver o espaço público, de acesso ao transporte público, ao lazer e à cultura. Fui conhecendo melhor o que eu já intuía, com Hannah Arendt, sobre as crianças: o maior determinante na educação delas é coletivo e político, a maior responsabilidade sobre o desenvolvimento da criança não é privada, não é dos progenitores e muito menos da mãe.
Existem garantias mínimas de pertencimento à coletividade que proporcionam estar-com de maneira autônoma e disponível. E essa consequente autonomia incide no modo como a criança calibra sua bússola para ajustar o seu norte, para navegar na vida seguindo o melhor caminho para que ela possa ser quem é.
E nesse aprendizado entendi que as diferenças não aparecem só nas grandes coisas – IDH, renda per capita, escola pública, violência – elas aparecem principalmente nos detalhes, especialmente numa sutileza muito discutida ao longo do século XX, que é a crescente psicopatologização da vida. E como “é de pequenino que se torce o pepino”, há todo um aparelhamento especial para garantir o máximo possível a inscrição das crianças no mundo a partir dessa lógica. Ou seja: na medida em que podemos forçar qualquer diagnóstico, podemos conquistar um sobrenome e uma rede de pertencimento, isto é, um novo conjunto apolítico que permuta a autonomia por novos predicados (pessoas identificadas por seus diagnósticos), qualidades que são inquestionáveis (posto que pautadas pelo lugar de verdade médica e suas linhas auxiliares) e que garantem não a outrora autonomia, mas um lugar-gado (ou de rebanho, como diria Friedrich Nietzsche) no mundo. Ou, como disse o filósofo G. W. Leibniz, um coletivo como “agregado de indivíduos”, e Thomas Hobbes, como aqueles sem contrato social com um corpo político.
Sabemos há muito que no capitalismo tudo vira mercadoria. Tudo significa tudo. Digo isso porque temos, por conta de nossa história, a forte tradição de não nomear as coisas e os acontecimentos corretamente. Fundamenta a nossa cultura um modo de escorregar pelos conceitos e de não radicalizar – buscar a raiz – das palavras para nomear cuidadosamente a vida, e é nesse sentido que a psicopatologização dela torna-se útil: simplifica o caminho de busca de si mesmo, de ter de se haver com quem se é e de ter de tomar decisões com a dificuldade e a dureza que a vida demanda. Pão e circo, ou futebol e carnaval, fundam uma cultura que tem um humor incrível para fazer memes a partir de sua própria história de sofrimento: esse é um modo de esquiva no chamado que a vida nos faz para a seriedade. Aí a seriedade aparece em outro ponto: a seriedade do diagnóstico, do tratamento. É como se finalmente pudéssemos tomar emprestado um peso mínimo para mantermos os pés no chão e seguirmos em frente na guerra. Agora, munidos de adjetivos reconhecidos e que justificam o que fazemos e deixamos de fazer, podemos respirar um pouco mais aliviados e sentir que fazemos nossa parte na nossa relação com nós mesmos e com o mundo.
Pois bem, as culturas são infinitamente diferentes e também tenho entendido que, do mesmo modo que a noção de indivíduo não passa de uma entidade jurídica mínima, o mesmo ocorre com o conceito de “nação”. Talvez possamos dizer que uma nação é um conjunto de acordos jurídico-políticos feitos por diversas comunidades menores, acordos que preveem um cuidado com a infância pressupondo que esses cidadãos em formação se tornarão os guardiões desses acordos, e que definirão o destino dessa nação.
Claro que a diferença entre os países abre mais ou menos espaço para as crianças. Mas, infelizmente, a psicopatologização tem se espraiado, como se o destino da humanidade de fato fosse eliminar tudo de humano que temos em nós, como nas boas e velhas obras de ficção científica ditas distópicas.
Graças ao consultório on-line, tive a oportunidade de acompanhar de perto as políticas de intervenção precoce na Alemanha, na Suíça, na França, na Itália, no Brasil, na Argentina, na Grécia, na Espanha, em Portugal e nos Estados Unidos. E fui percebendo que cada vez mais essas políticas de intervenção estão sendo criadas e implementadas mais e mais precocemente e com mais força na produção de diagnósticos.
Acompanhar esse evento durante a pandemia tem sido ainda mais revelador. Ela é, para além de um fato e um caso de saúde coletiva, uma excelente oportunidade para o recrudescimento do fascismo, como advertiu Giorgio Agamben. Claro que também é uma excelente oportunidade de negócios, pois acompanhamos as diferenças entre os países e fica muito claro quais são aqueles que fazem mais ou menos negociatas para lucrarem com a pandemia, desde o superfaturamento de vacinas até laçar moda de máscaras. Mercadoria circula muito mais que informação.
A implantação da chamada “didática à distância” foi muito diversa em cada país e, claro, tocou as crianças e adolescentes também de modos diversos. Ainda assim, com mais ou menos respeito a essa população, um tom comum foi o aumento da produção dos diagnósticos. Entendo isso da seguinte forma: frente ao imprevisível, frente à aparição da morte na sua potencialidade mais explícita, recorremos a um dispositivo total, que se apresenta como verdade e que traz em si uma força jurídica de quem dá conta da crise, do extremo, do caos. Medicar o caos se apresenta como solução para não precisarmos lidar com ele. Nem nomeá-lo, nem pensá-lo, nem nos submetermos ao fato de que não estamos sempre no controle das coisas e que, estando nesse mundo, fazemos parte da natureza tanto quanto uma formiga ou um vírus. Sem prioridades.
Tem sido cada vez mais comum crianças serem diagnosticadas e inseridas num destino encerrado, uma “carreira moral do doente mental”, como ensina Erving Goffman, que não deixa espaço para mais nada. Trago alguns recortes breves e superficiais para ilustrar, ainda que pouco, o que estou dizendo: há um tempo acompanhei um caso na Alemanha, de uma criança bilingue acusada de ser diferente. Na busca por um diagnóstico que justificasse o encerramento da criança, até eletroencefalograma durante o sono foi proposto: a busca desesperada pela causa, pelo ponto que revela o mistério, que justifique alguma intervenção. A família pôde se opor porque tinha uma comunidade de pertencimento forte que a amparou, mas também porque tinha um pensamento crítico que fazia toda a diferença. Desnecessário dizer que a criança cresceu e hoje está ótima. Por discernimento dos pais, a mudança para uma escola montessoriana foi suficiente para a “resolução do problema”. Em outro caso, na Suíça, uma criança trilingue foi acusada (sic) de ser hiperativa, sendo que a escola só a recebia duas vezes por semana. Claro, a inexistência de rede pública na Suíça é um caso a parte e a política de acolhimento do imigrante é débil.
Assim, entendo que criança precisa de comunidade, de espaço público, de horizontes amplos e acolhedores, de muita gente disponível que suporte sua própria infância demolida e se proponha a dar o salto sobre sua criança ferida, rumo a um outro modo de ver a vida. Criança não precisa ser contida, precisa crescer num espaço (amplo) onde toda a comunidade chame para si a responsabilidade do cuidado. E não cabe à escola acusar uma criança, seu papel é permitir que a criança possa ser quem ela é, nas suas diferenças, potencialidades e limitações.
Na Itália, tem ocorrido um debate que, por incrível que pareça, é também promovido pelos assim chamados “profissionais da saúde mental” (sedizentes herdeiros de Basaglia): crianças refugiadas, vindas das regiões da África subsaariana, com famílias que não falam italiano, apresentam um assim denominado “atraso na linguagem”. Ou seja, espera-se que as crianças comecem a falar, andar, responder nossas necessidades em determinado marco temporal justamente como dispositivo para oprimi-las e as inserir na carreira moral. Dessa forma, inventaram que essas crianças – que não escutam italiano em casa e que têm um trânsito comunitário diverso pela restrição de rede do imigrado – são autistas. Chega-se a falar de um “surto de autismo” entre essas crianças. Ninguém da assim chamada “saúde mental” percebe que o fundamento do assim chamado diagnóstico é o racismo, e isso ocorre mesmo com o auxílio de antropólogos “mediadores culturais” (recurso presente nessas redes de acolhimento), posto que o argumento médico sempre tem mais peso.
Na França, o chamado “diagnóstico diferencial precoce de autismo” também vem ganhando mais força. A dificuldade de se lidar com o bebê e com o puerpério reverbera numa necessidade de finalizar o sofrimento que não pode ser traduzível em palavras, e que é de difícil compreensão. Esse modo privilegiado de se entender a saída da angústia pode ser visto de diversas formas, muito pela sua força jurídica.
Os psicólogos costumam ter receio das reverberações jurídicas de seu trabalho. Transferem a responsabilidade da nomeação para os médicos-diagnosticadores, que reduzem a questão a uma intervenção mercadológica, pois há um lastro jurídico que os ampara, sustentado pelo poder de prescrever fármacos legalmente autorizados: uma anonimização das responsabilidades diretas. Assim, a questão da falta de espaço para a infância é uma questão de mercado, jurídico-política em que o psicólogo, atuando como linha auxiliar desse processo, precisa ter consciência de suas escolhas e posições nesse embate.
É preciso entender muito bem onde estamos e quais são as regras não-ditas do jogo em que a psicologia é convocada a participar. É preciso retornar mil vezes aos fundamentos e radicalizar, conscientes dos discursos que herdamos e construímos. Em nome da saúde, de liberdade e cuidado ilusórios, cada vez práticas mais autoritárias se constituem. Precisamos estar sempre atentos a esse jogo invisível de forças para que possamos assumir nossas posições e, mais que isso, assumir a necessidade de refundar a psicologia como um dispositivo de autonomia e de respeito.
Quem escreve

Myrna Coelho
Profa. Dra. Myrna Coelho, psicóloga clínica, cofundadora do curso “Fenomenologia Crítica: ações clínicas, educacionais e institucionais”, do Instituto Sedes Sapientiae. Decidiu recomeçar a vida do outro lado do oceano, onde segue atendendo seus pacientes e dando supervisão on-line. Atualmente pesquisa psicoterapia on-line.