A integração corporal ¹ é um tema muito abordado por psicólogos envoltos em práticas corporais. Também é colocada como um dos nortes do trabalho em eutonia – como já dito em outros textos desta coluna. Mas, afinal, o que se quer dizer quando se usa essa expressão? O que entendemos por integração corporal e por que a consideramos importante?
Nunca me pareceu muito fácil explicar o que significa um estado corporal mais integrado – é algo que está em um plano da experiência que as palavras parecem não dar conta de abarcar. Para compreender o que significa essa expressão me parece inevitável passar pela experiência de transitar de um estado menos integrado a um estado mais integrado. O que posso dizer, a partir da minha experiência, é que quando estou experimentando uma integração maior, me sinto mais viva, ando pelas ruas mais sensível aos cheiros, às cores, aos sons, ao caminhar das pessoas ao meu redor. Fico mais presente ao ambiente em que meu corpo – organismo vivo e pulsante – está imerso. Fico menos enredada pelos caminhos – muitas vezes labirínticos – dos pensamentos. Me sinto mais presente, mais real, consigo me comunicar melhor com as pessoas.
Nesse sentido, encontro muita ressonância na teoria do psicanalista inglês Donald Winnicott, que afirma que o nascimento biológico não garantiria o que ele chama de “nascimento psíquico” – o sentimento de estar vivo, ser real e existir em um mundo real, o qual seria conquistado em um processo que ele denomina de “instalação de si mesmo”, processo instável, precário e que deve ser continuamente conquistado ao longo da vida. Winnicott afirma que a existência humana não está fundada em nenhuma certeza, a não ser na tendência em direção a uma integração que pode conduzir à saúde e à continuidade do ser. Assim que nasce, o bebê viveria um estado de não-integração; com o passar do tempo e um ambiente propício, a criança iria vivenciando tarefas e conquistas que lhe aproximariam da integração. A configuração de um ambiente propício (ou não) ao amadurecimento do bebê no início da vida se daria, principalmente, pelas funções maternas exercidas por sua mãe. (Ou então, na ausência desta, pela figura principal incumbida de realizar as funções maternas).
Segundo Frota (2006), a primeira tarefa do bebê neste momento seria a conquista de uma integração temporal e espacial, a qual seria sustentada pelo holding da mãe – conceito utilizado por Winnicott para designar a habilidade desta em sustentar um ambiente favorável para que o bebê realize essa integração, a qual envolve a possibilidade de sustentar uma situação no tempo (acompanhar o bebê em suas necessidades, no tempo necessário para saciá-las), promover uma regularidade temporal no ambiente (ritmo de alimentação, sono, banho etc) e a disponibilidade tranquila de estar presente ao bebê e ser descoberta por ele. Desta forma, o tempo começa a ser internalizado pelo bebê através dos ritmos cotidianos.
O processo de temporalização e espacialização sustentado pelo holding irá fornecer sentido ao sentimento de eu e justificar a percepção de que naquele corpo existe um sujeito. Seria a partir do estado primário de não-integração que ocorre a integração por breves momentos e períodos, só depois chegando a ser um fato duradouro e estabelecido. A segunda tarefa a ser realizada pelo bebê nesse estágio inicial do amadurecimento é chamada por Winnicott de personalização, conceito que designa o processo de alojamento da psique no corpo, o qual faz nascer a capacidade de estabelecer relações objetais. A tarefa a ser realizada pela mãe do bebê neste momento é denominada por Winnicott de handling, ou manejo e consiste em segurar firmemente o bebê, acariciá-lo e tocá-lo delicadamente.
Há uma série de outras tarefas a serem realizadas pela mãe e pelo bebê até que este possa atingir o que Winnicott chama de “nascimento psíquico”, mas não adentraremos tanto em sua teoria neste texto. Por ora, nos parece interessante pontuar como sua teoria se relaciona com práticas de trabalho corporal e como parece, de algum modo, alargar a compreensão de algumas experiências de integração que vivemos através de trabalhos deste tipo. Vou falar aqui mais especificamente da prática da eutonia – já apresentada em artigos anteriores desta coluna – por ser a prática em que tenho mais experiência. Mas pessoas envolvidas em outros tipos de práticas corporais possivelmente também encontrarão ressonâncias nestes pensamentos.
Algo que me chama bastante atenção é que as funções maternas primárias se dão fundamentalmente pela criação e sustentação de um ambiente e pelo contato corpo a corpo com o bebê e, nesse sentido, se assemelham muito a alguns dos princípios fundamentais da prática de eutonia. O trabalho eutônico envolve um processo de aprofundamento da sensibilidade superficial e profunda do corpo a partir de toques sutis que favoreçam uma percepção mais apurada de si, das próprias estruturas corporais e do ambiente ao redor. A/o eutonista também busca criar e sustentar, a partir do próprio estado de presença e de atenção, um ambiente em que seja possível estar atento às próprias necessidades corporais, o que propicia os ajustes espontâneos de tonicidade realizados pelo corpo.
Em aulas de eutonia testemunhei algumas experiências em que era inevitável associar as vivências das pessoas aos apontamentos de Winnicott sobre a integração corporal. Uma vez, em uma aula em que foi feito um trabalho de estimulação da pele, uma aluna me disse que estava, pela primeira vez, sentindo que tinha “conteúdos” dentro do corpo: órgãos, ossos, espaço interno e que sentia como se estivesse localizada “dentro do próprio corpo”. Em um trabalho com alunos que eram moradores de um residencial terapêutico e que estavam em um estado de desintegração mais severa, foi possível observar como o trabalho com o toque e o estabelecimento dos contornos corporais iam abrindo a essas pessoas a possibilidade de estar em si e de sentir-se habitando o próprio corpo e como isso mudava completamente a relação delas com o espaço. Essas pessoas passavam a circular de forma diferente pela casa que moravam, saindo de circuitos mecânicos, percorrendo novos espaços e possibilidades de convívio. Estes alunos também relatavam, durante o processo eutônico, estar conseguindo se comunicar melhor com outros moradores da casa, estabelecendo novas conexões afetivas.
Para esboçar algumas respostas às perguntas feitas no início deste texto, creio ser possível afirmar que um estado de maior integração corporal diz respeito a este sentimento de unidade do corpo e do pensamento, que traz esta sensação de se sentir mais “real”, abrindo possibilidades de uma maior autonomia e desenvoltura no ambiente. Observo também que este estado propicia uma maior amplitude da potência criativa e aumenta nosso potencial de vivenciar conexões, favorecendo o estabelecimento tanto de relações de intimidade, quanto de processos de trabalho e criação coletivos. Por fim, como uma resposta mais aprofundada a estas questões exigiriam um texto mais denso e extenso, vou deixar aqui duas indicações de leitura: o livro “Natureza Humana”, de Donald W. Winnicott e o livro “Conversas com Gerda Alexander”, de Violeta Hemsy de Gainza.
NOTA DE RODAPÉ
(1) Considero aqui o corpo como uma unidade psicofísica, portanto quando falo de integração corporal me refiro também a uma integração psíquica.
REFERÊNCIAS
FROTA, A. A reinstalação do si mesmo: uma compreensão fenomenológica da adolescência à luz da teoria de Winnicott. In: Arquivos Brasileiros de Psicologia, v.58, n.2, 2006.
Quem escreve

Alice Vignoli Reis
é psicóloga pela USP, mestre em psicologia pela UFRJ e doutoranda em psicologia nesta mesma universidade. Possui formação profissional em Eutonia pelo Núcleo Berta Vischinivetz. Pesquisadora associada ao NEIFECS – Núcleo de Estudos em Fenomenologia e Clínica de Situações Contemporâneas. Desde a graduação tem se sentido intrigada com a questão da superação da cisão mente/corpo e busca aprofundar-se nela. Atualmente dá aulas como professora substituta no curso de graduação em psicologia da UFRJ e descobriu na docência uma paixão bandida, daquelas que dão muito prazer e muito trabalho. Atua também como psicóloga clínica, no Rio de Janeiro, a partir de uma perspectiva que entende o sujeito como corpo situado no mundo. alice.v.reis@gmail.com.