“Quem não cuida de si que é terra, erra.” Caetano Veloso
Na coluna passada introduzi o tema da importância de se considerar a corporeidade na clínica com a seguinte afirmação: “Somos matéria. Inexoravelmente. Não conseguimos escapar de ser matéria”. Tinha o intuito de dizer que, por mais que nossas concepções de humanidade tenham a tendência a negar este aspecto concreto de nossa existência, ele sempre se colocará a nós de forma imperativa. Recentemente, em minhas sessões no consultório, outra afirmação tem aparecido insistentemente em meus pensamentos: “matéria é memória”. Sei que Bergson dedicou um livro para explorar esta relação entre Matéria e Memória, mas não vou adentrar aqui em perspectivas teóricas sobre o assunto, quero compartilhar as reflexões sobre a temática que têm emergido na minha prática enquanto psicóloga.
No núcleo de pesquisa ao qual pertenço e em outros lugares onde discuto a clínica, muito falamos sobre a importância de uma atitude de presença do psicólogo – essa atenção ao momento presente, aos afetos que emergem na relação. Talvez, às vezes, percamos de vista a profundidade histórica que entremeia este estado de presença. Outro dia, defronte a uma paciente que narrava a elaboração de um processo de adoecimento, se fez claro pra mim o quanto nossas corporeidades – a minha e a dela – estavam carregadas de memória; e que a memória, assim como o pensamento, não paira em qualquer lugar acima de nossas cabeças ou se esconde em algum recôndito local de nossos cérebros. A memória está nos músculos, na pele, no cérebro, nos órgãos. A memória está nos intestinos, numa contração corriqueira da musculatura, em uma dificuldade absoluta em confiar a pele ao toque, na expressão do rosto. E esta memória não diz respeito apenas à nossa existência singular, mas também à nossa ancestralidade e à nossa inserção no mundo. Trazemos, em nossos gestos e expressões, as maneiras de nossos pais, avós, bisavós, das pessoas de nossa convivência mais íntima. Quantas vezes não observamos a mesma ruga de preocupação se reproduzir nos rostos de pais e filhos? Ou exatamente o mesmo esboço de um sorriso?
Nosso corpo carrega também a memória do seu cotidiano de vida e trabalho, que diz respeito ao lugar social que ocupamos no mundo. Não esqueço uma vez quando fui fazer um boletim de ocorrência numa delegacia, o escrivão bateu os olhos em mim e perguntou “professora ou psicóloga?”. Seu olhar treinado conseguia identificar imediatamente, pela minha postura corporal, qual era a profissão. Trazemos em nossa corporeidade diversas memórias: memória ancestral, memória de uma vida pessoal, memória que se constrói cotidianamente pela forma que habitamos o mundo e pelo atravessamento das forças políticas em nossa existência. É importante ressaltar que essa matéria que é nosso corpo é também matéria do mundo e está aberta às suas afetações.
Quando afirmo que somos matéria não quero dizer que sejamos algo inerte, mas que somos este corpo cheio de partículas em movimento, matéria viva e plena de sentido. Matéria que existe e se transforma ao longo do tempo e que tem seu próprio padrão de vibração, seu próprio tempo de transformação. Um tempo de maturação que não corresponde a alguns de nossos desejos. À revelia de nossa vontade, por exemplo, nós envelhecemos, a pele cria rugas, os cabelos embranquecem.
Tenho observado, na clínica, que muitas vezes há um grande desejo ou ansiedade de tentar solucionar pontos sensíveis de sofrimento através de um pensamento que se apresenta descolado da experiência concreta, deste tempo da matéria. Quase como se fosse possível, através de um esforço mental, se livrar do incômodo ou da dor. Ou, então, acelerar processos. Mas não é. A matéria apresenta resistência a um livre fluxo de transformação idealizado pelo nosso pensamento. Memórias antigas e cristalizadas na musculatura precisam de um labor cotidiano e atento para achar caminhos de transmutação e é preciso coragem para habitar ou (re) habitar certos espaços do corpo, certos espaços de si. Sinto que um grande aprendizado neste trabalho artesanal e cotidiano de fazer-se existente – que é compartilhado em um processo clínico – é saber respeitar este tempo da matéria, acompanhá-lo, dar sustentação aos seus processos de transformação.
Deixo aqui o convite para assistirem esse belo vídeo do grupo Corpo dançando a música “Mortal Loucura” de Caetano Veloso: https://www.youtube.com/watch?v=cfUsU3GAxx8
Quem escreve

Alice Vignoli Reis
é psicóloga pela USP, mestre em psicologia pela UFRJ e doutoranda em psicologia nesta mesma universidade. Possui formação profissional em Eutonia pelo Núcleo Berta Vischinivetz. Pesquisadora associada ao NEIFECS – Núcleo de Estudos em Fenomenologia e Clínica de Situações Contemporâneas. Desde a graduação tem se sentido intrigada com a questão da superação da cisão mente/corpo e busca aprofundar-se nela. Atualmente dá aulas como professora substituta no curso de graduação em psicologia da UFRJ e descobriu na docência uma paixão bandida, daquelas que dão muito prazer e muito trabalho. Atua também como psicóloga clínica, no Rio de Janeiro, a partir de uma perspectiva que entende o sujeito como corpo situado no mundo. alice.v.reis@gmail.com.
Teresa Vignoli
set 19, 2018 at 11:25
Excelente texto! Reflexão necessária para todos nós, psicólogas/os.