Somos matéria. Inexoravelmente. Não conseguimos escapar de ser matéria. E, apesar desta ser uma verdade muito simples, que se impõe a nós de forma concreta, sempre que a digo em sala de aula, no curso de psicologia, observo um certo espanto dos alunos. Ou então, quando estou explicando a alguém o que é a eutonia e digo que é uma prática de educação somática que trabalha a regularização do tônus corporal através da atenção às sensações e percepções, explicando que, para isso, a experiência e conscientização da estrutura óssea é fundamental, vejo a pessoa se arrepiar ao entrar em contato com a ideia de que ela própria é um esqueleto. Apesar de ser condição de nossa existência no mundo, o corpo, muitas vezes, se apresenta a nós como um estranho, um enigma.
Foram justamente os enigmas que meu corpo me colocou ao longo da vida que me levaram, ainda na graduação, a ir em busca das práticas somáticas de integração corporal. Por mais que eu compreendesse, no plano do pensamento, algumas das minhas questões pessoais, os bloqueios corporais se impunham, enigmáticos. Era uma musculatura que se crispava, uma dificuldade de entregar o peso para o chão, um gesto que traía as ideias que fazia de mim, uma sensação forte na barriga que me acometia em determinados momentos da vida. Havia lugares aos quais eu imaginava poder ir, mas o corpo se colocava como limite, muitas vezes como impossibilidade. Paradoxalmente, a busca por compreender essa enigmática existência corporal, que se apresentava turbulenta e cheia de limitações, me levou a descobrir potências até então por mim desconhecidas.
Aqui evoco a famosa frase de Spinoza, usada tantas vezes por quem trabalha com abordagens corporais: “O que pode o corpo?”. Somos herdeiros de uma tradição cartesiana de pensamento que desvaloriza nossa experiência sensorial, ao considerar que nossos sentidos seriam fonte de percepções equivocadas e que haveria uma verdade sobre as coisas transparente e universal, acessível apenas pelo intelecto. Essa tradição apresenta mente e corpo como instâncias separadas e, ao meu ver, coloca a verdade como instância inatingível, uma vez uma vez que o intelecto não existe como instância etérea que paira acima de nossas existências materiais.
Na verdade, não é possível pensar fora do corpo. E, por isso mesmo, não é possível escapar da própria perspectiva singular do mundo – não há tal coisa como uma verdade absoluta, universal. Contudo, não existe também pensamento puramente individual, completamente descolado de uma experiência compartilhada de mundo (é claro que é possível descolar-se mais ou menos dessa realidade comum, mas há sempre algum nível de compartilhamento, nem que seja apenas pela linguagem). Nossas perspectivas sempre escorregam umas nas outras – como diria o filósofo Merleau-Ponty, com quem dialogo neste parágrafo. O processo de produção do pensamento acontece na existência intercorporal. É através do movimento de nossos corpos no mundo, entrelaçados em uma existência compartilhada, que vamos tecendo os sentidos de nosso viver. E, ao nos desconectarmos dessa nossa existência enquanto corpo, através de toda uma tradição de denegação da corporeidade, nos desconectamos também de nossa própria potência de pensar o mundo.
Por isso a importância de voltarmos nosso olhar para o corpo e os mistérios que ele nos coloca. O que as afetações produzidas em nosso corpo dizem de nosso contexto e de nossas relações? Me parece que foram justamente os enigmas trazidos pelos corpos das mulheres diagnosticadas com histeria que levaram Freud a conceber a ideia de inconsciente e assim abrir caminho para a fundação da psicanálise. Por que então ainda é tão incipiente o pensamento sobre a corporeidade dentro do contexto acadêmico de formação do psicólogo? Por que os alunos se espantam com a proposição de uma prática corporal? E por que as abordagens que consideram a corporeidade são muitas vezes taxadas de esotéricas ou menos científicas do que outras? Deixamos um corpo objetificado nas mãos dos médicos e ficamos restritos à linguagem, esquecendo que verbo também é corpo, que nossas palavras nascem em nossas gargantas e que este nosso étereo pensamento acompanha os movimentos de nossos pés por onde quer que eles caminhem. E que esse mesmo pensamento é impactado e movimentado pelo mundo que se imprime em nossas retinas e/ou que toca a nossa pele.
O contato com nossa dimensão matéria também nos coloca em contato com a dimensão misteriosa da efemeridade da vida, de nossa existência fugaz no tempo. Temos uma tendência de pensamento que busca não se haver com estes mistérios, com aquilo que o que chamamos de mente não dá conta de explicar. Mas me parece que a prática clínica consiste justamente em exercitar a capacidade de habitar mistérios, de sustentar o não saber e assim dar espaço para as inúmeras possibilidades de vida que se apresentam neste universo que é a existência singular de alguém. Por isso me parece importante que consideremos cada vez mais a questão da corporeidade na clínica, que abramos espaço para o pensamento que se apresenta a partir das vibrações de nosso corpo no mundo.
Para fechar este texto – o primeiro que escrevo como colunista da plataforma Desha, deixo este poema do Leminski:
“Fechamos o corpo
como quem fecha um livro
por já sabê-lo de cor.
Fechando o corpo
como quem fecha um livro
em língua desconhecida
e desconhecido o corpo
desconhecemos tudo.”
Paulo Leminski
Quem escreve

Alice Vignoli Reis
é psicóloga pela USP, mestre em psicologia pela UFRJ e doutoranda em psicologia nesta mesma universidade. Possui formação profissional em Eutonia pelo Núcleo Berta Vischinivetz. Pesquisadora associada ao NEIFECS – Núcleo de Estudos em Fenomenologia e Clínica de Situações Contemporâneas. Desde a graduação tem se sentido intrigada com a questão da superação da cisão mente/corpo e busca aprofundar-se nela. Atualmente dá aulas como professora substituta no curso de graduação em psicologia da UFRJ e descobriu na docência uma paixão bandida, daquelas que dão muito prazer e muito trabalho. Atua também como psicóloga clínica, no Rio de Janeiro, a partir de uma perspectiva que entende o sujeito como corpo situado no mundo. alice.v.reis@gmail.com.