A pessoa deprimida estava com uma dor terrível e incessante e a impossibilidade de repartir ou articular essa dor era em si um componente da dor e fato de contribuição para seu horror essencial.
David Foster Wallace, Breves entrevistas com homens hediondos
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Há alguns anos, lendo o conto “A pessoa deprimida” (1), de David Foster Wallace, fui tomada, além de pelo fascínio, por uma estranha curiosidade. Como o autor, de quem eu sabia quase nada, conhecia tantas medicações psiquiátricas e escrevia com tanta propriedade sobre um processo terapêutico em um caso –– sua personagem –– de depressão? Eu já sabia que ele havia se matado por enforcamento, e não foi difícil descobrir que o próprio autor, ao longo da vida, tomara boa parte daqueles remédios e passara por internações psiquiátricas e por eletroconvulsoterapia, o famoso eletrochoque. Como psiquiatra e alguém que reconhece como morada existencial a literatura, me vi a indagar, através de Wallace, de que maneira o sintoma de minha prática cotidiana virava palavra e construção narrativa, ou se havia alguma chance de ser justamente a dor o pulso de seu ritmo de escrita.
Muitos são os escritores que se mataram em todas as épocas, e ao longo da história da humanidade por muito tempo se relacionou a melancolia ao gênio criativo, como se este fosse de alguma forma devido àquela. Maria Rita Kehl, na introdução a Luto e melancolia, de Sigmund Freud, diz justamente da “(…) possibilidade (…) de habitar extremos que torna o melancólico aberto à criação poética. Ou seja: a “tornar-se outro” (…) –– como Madame Bovary, de Flaubert! Esse era o modo como os antigos entendiam a capacidade do poeta de inventar o que não existia. O outro modo de “tornar-se outro” seria a loucura. Por isso, para dominar esse outro que os habitava, alguns melancólicos, da Antiguidade até o apogeu da Era Moderna, vieram a público descrever sua experiência, ou escrever a partir dela. Vem daí a importância do papel representado pelo melancólico, como um sujeito que teria perdido seu lugar no laço social e sente necessidade de reinventar-se, no campo da linguagem.” (2)
Urania Tourinho Peres, no posfácio do mesmo livro, constata a insuficiência da medicina para apreender e compreender a melancolia e percebe ser devido a esse limite que, até os dias de hoje, as descrições mais acuradas do padecimento que atualmente denominamos depressão são as escritas por quem dele sofria (3) –– e tinha talento para expressá-lo.
Se mesmo o registro sobre a melancolia nos foi legado por escritores, era de se esperar que até nossos dias se relacionasse algum tipo de gênio com o que se descreve como dor da alma. Talvez por isso eu mesma tenha tido, diante de David Foster Wallace, a tendência a atribuir seu talento a seu sofrimento. Mas foi justamente Freud que rompeu com a tradição dessa associação e, segundo Kehl, privatizou “a melancolia ao trazê-la, da tradição de pensamento que vinculava o melancólico ao campo da arte e da vida pública, para o laboratório fechado da observação psicanalítica, a vida familiar.”(4) Freud certamente não ignorava o lugar dado à tradição do pensamento à relação entre melancolia e genialidade criativa, mas optou por não mencionar tal associação.
Kehl continua: “Freud teve a elegância de se recusar a patologizar a inclinação de algumas pessoas excepcionais à criação artística: para ele, a psicanálise não teria nada a dizer a respeito do talento criador. Seu belo Luto e melancolia representou (…) uma ruptura com a longa tradição que associava a melancolia à criação artística”(5), e instaurou também o reverso, a possibilidade de o talento criador tampouco ter nada a dizer a respeito da melancolia. No filme O final da turnê, de James Ponsoldt, o jornalista David Lipsky acompanha David Foster Wallace na viagem de divulgação de seu livro Graça infinita. Em um determinado momento, ao propor ao escritor uma explicação de certa forma literária (ou narrativa) acerca do período em que foi internado por risco de suicídio (“Então você estava nos seus quase trinta anos, você estava sofrendo, querendo se tornar bem sucedido…”), o jornalista é interrompido e escuta: “eu acho que o diagnóstico não muito sofisticado é que eu estava deprimido.” Voltando à minha curiosidade inicial, me observo indagando se a depressão de Wallace se destacou a meus olhos como elemento autobiográfico justamente pela tradição de pensamento que ignorei já ter sido rompida; afinal de contas, não me perguntei sobre o trabalho como “homem das toalhas” de um vestiário como fonte de inspiração, e no entanto ele escreveu também sobre isso.
Foi a partir de Freud, então, que fomos apresentados à possibilidade de não poetizar o sofrimento psíquico e a loucura e encará-los como fonte de dor e não de inspiração. Afinal de contas, se são muitos os escritores e poetas melancólicos e loucos, infinitamente maiores são os depressivos e psicóticos impossibilitados pela própria doença da tentativa de sublimar sua dor através de qualquer arte, presos no mesmo do sintoma. Pois é isso o sintoma, a perda da possibilidade de ser si mesmo e precisamente da capacidade criativa. Lembro-me, durante a residência médica em psiquiatria, da surpresa com que constatei que quase todos os delírios eram iguais: os pacientes estavam sendo perseguidos, ou seus pensamentos estavam sendo influenciados pela televisão, ou eles sentiam que não valiam nada e que apodreciam por dentro, como se todos tivessem estudado o mesmo roteiro. Eu havia assistido naquela época ao filme Estamira e achava que a loucura poderia ser bela, mas bela é só uma ínfima parte da loucura, a que escapa à repetição que é por definição o sintoma e então aparece para nós, a que resta de todo o submerso tragante de dor do qual a palavra só sai com um esforço descomunal.
A partir do momento em que o adoecimento é entendido como perda e não como aumento da possibilidade criativa, pode-se esperar que os tratamentos, cada vez mais modernos, devolvam a uma pessoa as suas capacidades. É isso que intencionamos na prática clínica. Mas temos sido alertados pelos meios de comunicação sobre um aumento importante das taxas de suicídio, mesmo que medicações mais novas e teoricamente mais eficazes tenham sido inventadas. Desde 2000 (dados estadunidenses), as taxas de suicídio vêm aumentando progressivamente, desdenhando do uso cada vez mais disseminado de antidepressivos(6). No Brasil houve, de 2007 a 2016, um aumento de 17% da taxa de mortalidade pela causa(7), e o número segue crescendo.
De 1987 a 2000, houve queda dos índices de suicídio (dados estadunidenses da mesma fonte citada), o que foi rapidamente explicado pelo advento e difusão das medicações antidepressivas (especificamente um tipo delas, os inibidores de recaptação da serotonina, conhecidos pela sigla ISRS, como a fluoxetina, a sertralina, o escitalopram). Mas a análise da oscilação de fatores de risco bem estabelecidos para o suicídio mostrou que aquela diminuição se deveu à melhora dos índices de desemprego e à redução do porte de armas de fogo(8), não ao aumento exponencial do uso de antidepressivos, como a indústria farmacêutica queria fazer crer. Pelo contrário: alguns estudos apontam para a medicalização do suicídio como fator causal. É sabido, por exemplo, que os ISRS dobram o risco de pensamentos suicidas em menores de 18 anos (por motivos não completamente esclarecidos) e que em algumas pessoas pode causar uma inquietação psicomotora angustiada conhecida como acatisia, associada algumas vezes a pensamentos e atos suicidas. Alguns estudos concluem, de forma surpreendente, que, quanto maior o investimento em programas de saúde mental e acesso a tratamento, maiores as taxas de suicídio(9), apontando para uma direção completamente divergente à do senso comum e mesmo da maioria das diretrizes terapêuticas. Como compreender algo assim?
A resposta a essa pergunta parece ultrapassar as estatísticas de aumento das taxas de suicídio por acatisia ou algum outro efeito colateral. Talvez a questão seja precisamente a melhora proporcionada pelos antidepressivos: se por um lado a diminuição de sintomas alivia, por outro exacerba a falta de sentido por esse mesmo alívio –– então tudo se resume a química? João Augusto Pompeia aponta para hesitações frequentes nos consultórios de psiquiatria: “o que sinto, o que penso que as coisas significam, isso sou eu ou é efeito do remédio? O próprio fato de um remédio funcionar tão bem facilita que a pessoa desacredite do sentido da vida. Como saber o que na verdade as coisas significam para ela? Isso representa, então, um esvaziamento de significados. (…) O sentido se esvazia, não com o surto, mas com o remédio.”(10)
O próprio adoecimento não deixa de ser, em alguns casos, uma agudização da verdade que, no entanto, para viver, precisamos esquecer. Assim, por exemplo, alguém que sente a possibilidade sempre iminente da morte através de uma aguda crise de pânico não está fora da realidade como se poderia supor –– somos mortais, afinal. Diz também Freud, acerca do melancólico: “Quando, em uma exacerbada autocrítica, ele se descreve como um homem mesquinho, egoísta, desonesto e dependente, que sempre só cuidou de ocultar as fraquezas de seu ser, talvez a nosso ver ele tenha se aproximado bastante do autoconhecimento e nos perguntamos por que é preciso adoecer para chegar a uma verdade como essa.”(11) O mesmo vale para a falta de sentido desvelada por alguns tipos de padecimento psiquiátrico. A vida, se nos enxergarmos como o punhado de células que somos, dentro da Terra, esfera ínfima no universo, não tem mesmo sentido. Mas nos é dado, como humanos, buscá-lo ou construí-lo incessantemente como se houvesse, e há beleza e graça no sentido que surge do impossível por um instante apenas. Algo próximo ao que Hannah Arendt chama de liberdade e que nos caracteriza como humanos: a capacidade de começar(12). Embora devamos morrer, pois somos mortais, o que nos distingue das outras espécies é o fato de que, apesar disso, nascemos para começar(13). E por isso a arte, e a poesia, e o retorno à pergunta de por que, então, tantas pessoas tidas como gênio se mataram se estiveram, afinal, aninhadas no sentido do poético.
Recentemente, um jovem escritor brasileiro de talento e sucesso se matou. A notícia de sua morte abalou muita gente, como era de se esperar, como acontece diante da morte de uma pessoa jovem, mais ainda da morte por suicídio. A mim também o fato de sua morte trouxe muitas perguntas. A partir do sentido que busco para minha própria vida, me perguntei imediatamente, identificando-nos pelo amor à literatura: como ele se matou se há tanto para ler e escrever? Não conseguia compreender como a literatura não o havia salvo, ela que salva tanto a minha vida. Mas talvez o suicídio ecoe justamente o que o motivou: a incompreensibilidade absoluta, impermeável a qualquer tipo de comunicação. Uma dor onde nem mesmo as pessoas amadas conseguem chegar. A solidão.
(E a psicopatologia, como diz Van der Berg em O paciente psiquiátrico, não é mais que a ciência da solidão.)
Em Luto e melancolia, Freud relaciona a instauração da melancolia a uma perda, ainda que inconsciente. Mas em alguns casos, talvez os mais intrigantes, essa perda não é visível ou compreensível. De fora, nesses casos, vemos alguém com uma vida que consideramos perfeita (mas ver de fora é sempre ver de fora), e se há alguma falta aparente, é justamente a falta da falta(14).
O personagem David Foster Wallace, nas últimas cenas de O final da turnê, diz, numa fala que não foi gravada (segundo mostra o próprio filme, foi anotada em um caderno por David Lisky, depois que o escritor deixa o quarto onde estava o jornalista), acerca dos episódios de depressão que o acometeram ao longo da vida: “Não foi um desequilíbrio químico, ou drogas, ou álcool. Foi muito mais eu ter vivido uma vida incrivelmente americana. A crença de que, se eu conseguisse X, Y e Z, tudo ficaria bem.”
A vida incrivelmente americana dita e escrita por Wallace talvez seja a potência máxima de um modo de viver que também é pressuposto por Freud, quando ele relaciona o início da melancolia à perda de algo, mesmo inconsciente; um modo de viver em que, em partes, se é o que se tem, como emprego, cônjuge e amor, e o sofrimento se justifica quando se perde qualquer dessas coisas ou quando nunca se chega a atingir. Nesse modo de vida –– que é o nosso ––, a falta, constituinte do humano, assume caráter provisório e exige preenchimento incessante. Mas Wallace aponta para uma outra faceta deste sofrimento: a conquista de tudo o que é preestabelecido querer leva a algum tipo de vazio, este impossível de se preencher. Talvez quando, enquanto sociedade, incluirmos o vazio no seio da vida –– através do silêncio, da pausa, das ínfimas possibilidades de recusa e renúncia ao que se deve ser, e até mesmo (e principalmente, quiçá) da arte e da poesia, onde o que se compreende e o que não se encontram no susto da beleza ––, nossos índices de suicídio possam enfim diminuir.
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(1). Em WALLACE, David Foster. Breves entrevistas com homens hediondos, São Paulo: Companhia das Letras, 2015.
(2). KEHL, Maria Rita. Luto e melancolia, São Paulo, Cosac Naify, 2011. p. 27.
(3). Segundo Urania Tourinho Peres, a melancolia é “Uma doença não regida pelas leis da medicina, apesar dos avanços da psiquiatria e da eficácia maior ou menor dos antidepressivos. E exatamente por essa particularidade os melhores tratados sobre ela são relatos, depoimentos de grandes escritores, poetas que padeceram desse sofrimento: Flaubert, Proust, Virginia Woolf, Fitzgerald, Primo Levi, Sylvia Plath, Baudelaire, Mário de Sá-Carneiro, Fernando Pessoa, William Styron, Clément Rosset, Clarice Lispector, entre outros.” Op.Cit, p. 117
(4). Op. cit., pp. 24-25
(5. )Op. cit., p. 30
(6). Este e os próximos dados foram retirados de https://madinbrasil.org/2018/09/suicidio-na-era-do-prozac/
(7). Segundo https://www1.folha.uol.com.br/cotidiano/2018/09/brasil-registra-11-mil-casos-de-suicidio-por-ano-diz-ministerio-da-saude.shtml
(8). Pessoas que moram em casas com armas de fogo têm três vezes mais chance de morrer por suicídio (dado extraído do texto citado anteriormente).
(9). https://madinbrasil.org/2018/09/suicidio-na-era-do-prozac/ (o dado é tão surpeendente que cito novamente a fonte).
(10). POMPEIA, João Augusto. Na presença do sentido: Uma aproximação fenomenológica a questões existenciais básicas. São Paulo: EDUC; Paulus, 2004. pp. 187-189
(11). FREUD, Sigmund. Op.cit. P. 55
(12). Devo e agradeço a aproximação desta faceta do pensamento de Hannah Arendt ao contexto do suicídio a João Augusto Pompeia.
(13). Para maior aprofundamento disso, vide A condição humana e “O que é liberdade” em Entre o passado e o futuro, de Hannah Arendt.
(14). Devo e agradeço esta reflexão a João Augusto Pompeia.
Quem escreve

Natalia Timerman
é médica e psiquiatra pela UNIFESP, mestre em psicologia clínica pela USP e escritora. Tem contos publicados em antologias e revistas e ficou em primeiro lugar no concurso de contos da Associação Brasileira de Psiquiatria em 2017. Publicou Desterros - histórias de um hospital-prisão (Editora Elefante, 2017), que narra histórias do Centro Hospitalar do Sistema Penitenciário, onde atua desde 2012. Atende em consultório particular desde 2007 como psiquiatra e psicoterapeuta fenomenológico-existencial. natimerman@gmail.com