Participei algumas semanas atrás de um evento que até então seria inusitado para mim, pois se tratava de um fórum voltado a estudiosos e profissionais da gastronomia. A questão que, num primeiro momento, me pareceu estranha não era o fato de a alimentação ser um assunto possível nas ciências sociais – afinal existem excelentes trabalhos sobre hábitos alimentares e sua relação com a cultura e organização social de grupos -, mas por não ser o objeto de estudo nas minhas pesquisas.
O convite veio de um amigo profissional da gastronomia. Com uma passagem pela Psicologia como primeira formação e por cozinhas no mundo, ele sempre compartilha comigo um pouco das experiências que o fizeram chegar ao ponto em que nos encontramos. Meu amigo havia iniciado recentemente um trabalho como pesquisador em uma organização empenhada em ampliar a difusão dos valores da culinária nacional e regional – e mais especificamente a culinária quilombola. Uma das propostas é pensar, por exemplo, o valor que deixamos de dar aos nossos alimentos afetivos/ancestrais/regionais quando pensamos em receber amigxs em casa e ofertar uma refeição. Logo oferecemos um risoto ou qualquer outra estrangeirice já nacionalizada (nada contra risotos, não se trata disso). Lembro-me, inclusive, de uma vez em que eu ia receber amigas em casa, planejando fazer um risoto de pequi[1] acompanhado com bananas da terra fritas (para quem é do centro-oeste brasileiro pode fazer um pouco mais de sentido, talvez). Ousada, não?
Volto. Falar de comida não é o objetivo aqui, mas faz parte da construção do que quero compartilhar. O misto de estranheza e satisfação pelo convite me fez ficar um pouco ansiosa por corresponder à confiança dada a mim. Comecei a pensar o que eu poderia falar sobre quilombos, alimentação e ciências sociais, uma vez que eu não pesquiso academicamente sobre quilombos. De qualquer forma, estava familiarizada com o pensamento de ver os quilombos como lugares (mecanismos) de resistência. Ocorreu-me então, dois dias antes do evento, que na constituição da minha história de vida há uma relação forte com a história de um quilombo específico: o quilombo do Quariterê. Em outro texto neste espaço falei brevemente sobre a presença da rainha quilombola Tereza de Benguela[2] como parte da minha infância, pois estudei da 1ª à 4ª série (agora são ciclos) em uma escola municipal que levava seu nome, e cabia às professoras nos contar a história da mulher que era homenageada na nomeação da escola.

Este primeiro ingrediente vindo de uma saborosa memória infantil me fez seguir a elaboração desta refeição-texto. Começando pela primeira capital do Mato Grosso, Vila Bela da Santíssima Trindade, que é uma cidade circundada por quilombos, inclusive o do Quariterê. Nessa associação, percebi que a cidade em que nasci e vivi por um bom tempo, também é circundada por territórios quilombolas. Como havia me esquecido de algo sempre presente na minha infância e que por vezes estudei sobre? Comecei a lembrar da relação dos alimentos típicos regionais com essa história sócio-espacial. A paçoca de pilão, a banana da terra (que depois de adulta relacionei com a cozinha africana), o bolo de arroz, a Maria Isabel, o arroz com pequi, o maxixe, o furrundu, tantos outros pratos que comecei a saborear em minhas memórias de que eram frutos da influência quilombola na região, influência que sempre se fez, ao mesmo tempo, presente e distante. Não me lembro de ter visitado qualquer quilombo no tempo que vivi em minha cidade natal. Também não recordo se na minha época escolar os quilombos eram destino de excursões para troca de conhecimentos.
Os saberes e realidade das populações quilombolas, ainda são desconhecidos por muitos, o que me fez pensar que poderia contribuir trazendo um pouco do que falava a historiadora Beatriz Nascimento[1] sobre os quilombos como sendo lugares de existência, resistência e organização social. Ótimo! Consegui voltar a ser “cientista social” na preparação da minha contribuição no evento.
Adicionei mais uma pitada de Abdias Nascimento e seu quilombismo[2] ao forno. Mas de toda minha preocupação com a estrutura “acadêmica pero no mucho”, o que mais me pegou, foi como mesmo sendo exposta em minha infância à história de ex-escravizados que lutaram por liberdade e formaram comunidades com uma lógica própria de organização social, comunidades cujos descendentes mantem ainda hoje tradições religiosas e alimentares às duras penas, pessoas negras como eu, foram apagadas também da memória como minhas possíveis origens. É verdade que pelo fato de meus pais serem de outro estado, eu sempre carreguei comigo um pertencimento-frouxo à minha cidade de nascimento e às tradições regionais, mas em casa tampouco imperavam as tradições do local de origem dos meus pais. Qual foi minha surpresa ao pesquisar um pouco e perceber que esse local também se trata de uma região rodeada de territórios quilombolas!
Muitos insights foram, então, surgindo, como temperos fortes e significativos. A relação da roupa branca que meu pai afirmava que pretos tinham que usar (depois de adulta soube da referência ao dia de Oxalá) e a existência de diversos e antigos terreiros na cidade que ele nasceu e cresceu. E eu nunca soube se minha família, por parte de pai, pertenceu a alguma casa de santo. Ao contrário, em casa sempre fomos muito católicos de domingo e ele nunca explicou o porquê do uso de roupa branca, apenas que “pretos deveriam usar para destacar a cor”. Um certo orgulho da cor mesclado com outras sujeições sociais próprias do Brasil. Da parte da minha mãe, neta de uma “índia pega no laço”, eram todos cristãos da Congregação Cristã do Brasil. Herdamos dessa minha bisavó o uso dos chás e ervas, que foi se apagando também.
Incrível como uma preparação para uma fala em um evento de culinária me revelou tanto sobre a minha própria história, que nunca teve palco ou reconhecimento. E aí deparei com mais uma expressão do racismo[5], não que eu não soubesse até este momento que muito do desconhecimento da sociedade brasileira sobre os quilombos não fosse uma questão de racismo estrutural, mas como também em mim e na minha família as práticas de apagamento histórico e social de nossos ancestrais foram extremamente eficazes. Assim, eu olho para esse social afetando homens e mulheres da minha família, eu inclusa.
Fiquei pensando nos amigos e conhecidos que possuem outras nacionalidades além da brasileira, por conta de seus avós ou pais. Como conseguem contar com orgulho, de conhecer e não apenas pela origem em si, a história de seus antepassados e com o mesmo orgulho homenageá-los e se beneficiar sem risco de discriminação com passaportes dessa nacionalidade original. Lembrei-me das vezes em que surgiram as conversas sobre ascendências e descendências, e quando questionada, simplesmente dizia que não sabia, ou depois de adulta respondia que originava de indígenas e africanos que moraram no nordeste. Assim, bem genericamente mesmo, sem saber as etnias. Sem pista. Afro-indígena.
Posso ser descendente de quilombolas e essa possibilidade, por saber da história dessas organizações e das pessoas que estiveram à frente historicamente e lutam ainda hoje, me enche de orgulho e ressignifica minhas possibilidades de (re) existência. E são para isso que servem os quilombos urbanos, esses espaços profissionais e culturais em que o protagonismo é de profissionais e referenciais negros. Mas a pecha do “racismo reverso”, quando surge um discurso que prioriza narrativas negras, não tarda a surgir. Porque pensar-se enquanto sujeito universal é um privilégio daqueles que se beneficiam das vantagens da branquitude, e nem mesmo se pensam enquanto sujeitos racializados.
Saí do evento pensando que,
depois de tantos anos, tenho finalmente uma pista de por onde começar meu
levantamento genealógico e assim conseguir meu passaporte quilombola.
NOTAS DE REFERÊNCIA
[1] É um fruto do cerrado brasileiro comumente presente na culinária regional no Mato Grosso, Goiás, Piauí, Minas Gerais e sul da Bahia. Geralmente existe uma relação de amor ou ódio como esse fruto. Quem ama “rói até caroço” – tomando cuidado com os espinhos, claro.
[2] É possível saber um pouco dessa história que aprendi na infância através do cordel que compõe o livro da cordelista Jarid Arraes. Heroínas Negras Brasileiras em 15 cordéis.1ª dição. São Paulo: Pólen, 2017.
[[3] NASCIMENTO, Maria Beatriz. Beatriz Nascimento: Quilombola e Intelectual- possiblidade nos dias da destruição. Diáspora Africana: Editora Filhos da África, 2018.
[4] NASCIMENTO, Abdias. Consciência negra e seu sentimento quilombista. In. Quilombismos. São Paulo: Editora Perspectiva; Rio de Janeiro: Ipeafro, 2019.
[5] Racismo vale lembrar, é usado aqui como um conceito que denomina um sistema de práticas em diversas esferas que visam garantir o domínio de um grupo, tido como modelo, sobre outros tidos como inferiores.
Quem escreve

Wallesandra Rodrigues
Cientista Social pela Fundação Escola de Sociologia e Política de São Paulo - FESPSP, mestranda na área de Ciências Humanas e Sociais na Universidade Federal do ABC - UFABC, desenvolve pesquisa com enfoque na situação de mulheres negras encarceradas em São Paulo. Integrante do Coletivo 21 de Novembro - 21N de alun@s negr@as da FESPSP. Membra do Grupo de Estudos Resistência (UFABC). Uma mato-grossense de "tchapa" (nascimento) que já foi bem nômade nessa vida. Por enquanto aqui.
VEM NÃO, QUE NÃO SOU SUAS NÊGA! | Wallesandra Rodrigues - Coluna | Desha
jul 15, 2019 at 16:12
[…] e ignorância sobre os cultos de matrizes africanas. Resquícios dos apagamentos que tratei no texto anterior, de nossa imposta tradição cristã, bem como de repressões policiais com devido apoio […]