Quando desisti do mestrado em psicanálise clínica na PUC-SP para chefiar um restaurante de comida natural que despontava, sabia que estava renunciando ao meu lugar ao sol na academia. Mas minha orientadora me disse “Vai, que a vida é mais importante que a psicanálise”. Respeitei fundo, guardei essas palavras e fui assar bolos de agrião cobertos com calda de frutas vermelhas feliz da vida. Ela estava certa, 10 anos se passaram, 3 restaurantes e uma cozinha industrial depois, minha bagagem é muito mais interessante hoje…Não foi simples, mas foi decisivo para o meu percurso pessoal, e – agora me dou conta – de que a profissional também.
Além de aprimorar muitas técnicas culinárias, estes anos serviram também de laboratório de observação sobre a nossa relação com a comida. Por mais que você deixe a clínica, escuta não te larga. A escuta está sempre ali, indicando contradições, chamando à atenção para o sofrimento humano, para as irrupções do inconsciente… Os clientes te pedem um prato milagroso, que alivie a gastrite, a dor de cotovelo, que lhes cure a dor da alma! Querem comer todo dia no seu restaurante porque você faz comida natural, então eles vão ficar magros, saudáveis, lindos… há sempre uma expectativa sobre a comida que vale ser escutada.
De vez em quando, um ato falho lindo me acometia: me referia aos meus clientes como pacientes. Eu ria e tocava o barco, não achava que ia voltar ao consultório até ser uma psicanalista velhinha com uma manta de lã sobre os joelhos. Enquanto me aprofundava em estudos nutricionais, ia entendendo as lógicas das cadeias produtivas e da relação campo-cidade, me perguntando se fazia e quando fazia sentido comer carne… Tive contato com o movimento vegetariano e principalmente o vegano. Conheci o crudivorismo, os sucos verdes, Auyerveda… etc. E pouco a pouco, cozinhar passou a não ser mais suficiente. Voltei a devorar livros, finalmente achei uma pós-graduação que juntava meus dois mundos, fui estudar psicologia e comportamento alimentar. Resolvi olhar de frente esse tema que me inquietava: considero a relação contemporânea com a alimentação uma das formas de mal-estar no mundo contemporâneo. Me explico, vamos a um panorama geral.
Se, por um lado, se celebram cada vez mais pratos gastronômicos elaborados, com ingredientes e técnicas mais e mais complexos (como foi, por exemplo, a Gastronomia Molecular espanhola), com os chefs ganhando status de celebridades, por outro, nunca se comeu tanta comida pronta e pré-pronta e fast food.
Comida também é hoje, como nunca foi para tanta gente, indulgência. Vivemos na era do food porn, em que a comida é exibida de forma seduzir nossos sentidos e dos deixar reféns deles. No passado, apenas os mais ricos podiam comer em abundância. Ainda que hoje persistam sérios problemas na equidade da distribuição de alimentos, passa-se menos fome no mundo atual do que em qualquer outro período da história(1). O tamanho dos rebanhos de gado de corte é o ilustrativo disso: eles são maiores do que da população de humanos! Já nos falta espaço para criar e para a natureza processar seus resíduos.
A comida, especialmente das refeições do dia a dia, está cada vez mais igual em todas as partes do mundo e desprovida de história sobre de onde ela vem, a que tradição pertence e quem a preparou. Já não almoçamos uma comidinha de mãe, de vó etc. E cada vez mais elas vêm em embalagens prontas – e em porções cada vez maiores. Esta comida já não satisfaz?
Quanto mais urbanos nos tornamos, mais se acentuam as mudanças nos hábitos ou rituais alimentares da população: se vivemos sozinhos, fazemos as refeições sem companhia, na frente das telas. Ou comemos no carro, no transporte público, em uma banca de rua, no quilo do trabalho, comida do take away… O ritual da família toda reunida à mesa ao final do dia é cada vez menos comum. Comer não significa mais, necessariamente, compartilhar. E será que essa comida desprovida de afeto e pertença, já não satisfaz?
Há ainda outro fenômeno muito típico do nosso universo ultra informado atual: como sabe-se cada vez mais sobre as propriedades de cada alimento, procura-se uma alimentação idealmente equilibrada e completa. Assim caímos no Nutricionismo. Passamos a olhar para os alimentos como se eles fossem apenas nutrientes – queremos um prato com a quantidade certa de proteínas, carboidratos e gorduras – e esquecemos que estes alimentos são comidas, com receitas, ingredientes diversos e histórias. “Coma isso!”, “Não coma aquilo!” dizem as redes sociais, os especialistas… as modas cientificas e pseudocientíficas passam e já não sabemos se ovo é ou não um alimento saudável, se goji berry é remédio ou veneno. Vamos nos sentindo desautorizados sobre as nossas intuições e gostos, sobre o que nos faz bem e o que gostaríamos de comer.
Desde a introdução alimentar, é comum que as mães estejam mais preocupadas com oferecer uma alimentação nutritiva, variada e orgânica aos seus bebês do que em proporcionar um momento de genuína exploração e conhecimento para os bebês. Não à toa há tantas teorias sobre a forma ideal de fazer a introdução alimentar. E algo que poderia fazer parte de um certo senso comum transmitido de geração em geração, ganha nomes interessantes como BLW(2) e afins. Nosso grau de desconexão com a alimentação é tão grande, que se tornou necessário ensinar, de forma sistemática, que é precioso dar-lhes tempo para explorar um novo alimento, sua cor, textura, sabor etc. À medida que um bebê vai acumulando estas experiências, ele vai criando um repertório não só sobre os alimentos em si, mas também sobre os efeitos de cada um deles em seu corpo. Qual sabor ele prefere? O que acontece se chupa determinado legume? E determinada fruta? Há comidas que gosta mais quente? Como seu estômago se sente depois de comer algo frio? E quando percebe que está saciado? À medida que conhece o mundo, o bebê vai construindo e conhecendo a si mesmo. E sim, como nós “psis” bem sabemos, isso acontece primeiro pela boca, desde a amamentação. A introdução alimentar é justamente importante pela criação deste repertório.
E então outro fenômeno chama a atenção: cresce significativamente o número de pessoas vivendo episódios verdadeiros de compulsão alimentar(3) ou que têm uma relação transtornada com a comida. Se há tanta comida disponível, por que não estamos “de barriga cheia” e satisfeitos? Esta pergunta é retórica, pois sabemos que não comemos apenas para saciar nossa fome fisiológica.
Neste cenário, os índices de obesidade crescem a olhos vistos: no Brasil esse índice saltou de 11,8% em 2006 para 20,3% em 2019(4), e o excesso de peso acomete 55,4% da população em geral hoje em dia. Este padrão se repete mundo a fora, para a preocupação de médicos, nutricionistas e gestores de saúde pública. Para dramatizar ainda este cenário, um fenômeno muito peculiar vem acontecendo: temos um grande contingente de obesos desnutridos. Este aparente paradoxo se explica pela alimentação excessivamente industrializada e com “calorias vazias” – essencialmente sal, gordura e açúcar – ser altamente palatável, quase viciante! Mas é completamente empobrecida da complexidade nutricional necessária para uma alimentação nutritiva. Para piorar, quanto mais baixa a classe social, maior o risco desse tipo de alimentação – baseada em bolacha recheada, refrigerante e miojo – predominar, pois trata-se de comida barata e prática. Estamos, sem dúvida, comendo mal… E tentando loucamente emagrecer. A indústria da dieta e da beleza fatura cifras milionárias com a insatisfação corporal de jovens, homens e mulheres. Continuamos a perseguir dietas milagrosas que resolvam de vez nossas angústias com a balança. Mas é sabido que dietas restritivas não costumam surtir efeitos a longo prazo, fazendo com que a 80% das pessoas que as praticaram, reganhem o peso perdido em um ano ou dois (Ades & Kerbauy, 2002) e comumente ganham mais do que haviam perdido. Estabelece-se, assim, o ciclo das dietas, em que cada vez mais tento emagrecer, me restrinjo, perco peso, canso de viver em restrição alimentar, desisto dela, como sem controle, ganho peso, fico frustrado, volto a fazer dieta e assim por diante. Os indícios de insatisfação corporal têm aparecido também, cada vez mais, em adolescentes e crianças(5).
E nunca se sofreu tanto às voltas com o tema da alimentação e peso. Novos transtornos alimentares vão sendo descritos: vigorexia, ortorexia, pregorexia, fatorexia, diabulimia… etc, para além dos clássicos anorexia, bulimia e T.A.R.E. passamos a precisar descrever e tratar modos de sofrer muito específicos relativos à forma como comemos. Adolescentes anoréxicas nos chegam ao consultório, crianças com padrões importantes de evitação alimentar e consequente e desnutrição são levadas às nutricionistas e psicólogos cada vez mais cedo.
Ainda que não se possa generalizar as psicodinâmicas responsáveis por cada caso em especial, é urgente encararmos que a mesa (e a balança e o espelho) são, certamente, lugares do sofrer contemporâneo.
Por mais diversos e complexos que sejam os casos, parece haver sempre um ponto comum: os sintomas na alimentação deflagram, invariavelmente, uma desconexão do paciente com seu próprio corpo. Ora a comida é anestésico para uma dor impensável, ora ela é companhia para uma solidão desmedida, ora é a fome que ganha lugar do protagonista, mas é nessa brecha que o sintoma se coloca.
Suspeito que estejamos construindo (ou contribuindo para a construir) coletivamente esta desconexão. E o mais interessante é que justamente a experiência de comer – tão prosaica e cotidiana – pode servir como via de reconexão de cada sujeito com seu próprio corpo. Técnicas de relaxamento e de mindful eating são instrumentos bastante interessantes para boa parte dos casos. É importante estar presente e atento na hora da refeição, inclusive saciar os nossos nove tipos de fome que temos (a fome da boca, do estômago, do nariz, do ouvido, do tato, dos olhos, a celular e a da mente e do coração(6) ). Estudos clínicos sobre comer intuitivo(7) também mostram bons resultados na retomada dessas percepções sutis sobre o próprio corpo, a fome e a saciedade. Mas estas técnicas valem muito mais quando acompanhados de uma escuta delicada, que ajude cada paciente a formular o sentido de seu sintoma.
Em outras palavras, para pensar a alimentação na clínica, é preciso retomar as bases da psique no corpo e essa relação tão íntima e indissociada. Um paciente que come compulsivamente ou restringe deliberadamente suas refeições (etc.) certamente está sofrendo de forma muito violenta psíquica e fisicamente. Como vimos acima, os transtornos alimentares, salta aos olhos como não é a lógica da fisiologia que impera sobre a fome e o comer, mas sim o simbólico (ou a falta dele!).
Tratar estes pacientes é permitir-lhes encontrar um lugar mais confortável para habitar neste corpo. Se estamos falando de corpo e psiquismo, estamos invariavelmente falando de afeto. Comer é afeto e comunicação.
NOTAS DE RODAPÉ
(1) Esta observação se refere ao mundo como um todo. O Brasil, após duas décadas de grandes avanços nessa área, infelizmente está retrocedendo de forma alarmante e rápida. Voltamos a ocupar o Mapa Da Fome mundial, tendo hoje cerca de 7,5 milhos de pessoas com insegurança alimentar segundo a FAO e ONU, sendo que até 2016 eram 3,9 milhões. O fim do programam bolsa Família nas últimas semanas coloca os especialistas neste assunto em alerta redobrado. A crise econômica atual indica que estes números devem crescer ainda mais nos próximos anos.
(2) Baby Led Weaning – ou Desmame Guiado pelo Bebê é uma técnica Introdução Alimentar que prioriza a autonomia da criança e propõe que os alimentos sejam oferecidos inteiros ou em pedaços grandes e muitas vezes in natura para a criança, ao contrário das papinhas tradicionais. O foco dessa técnica está em justamente respeitar o tempo do bebê na relação com os alimentos e não lhe oferecer comida na colher, o que possivelmente o faria comer mais do que sua saciedade.
(3) Ingestão, em um período limitado (por ex., dentro de duas horas) de uma quantidade de alimentos definitivamente maior do que a maioria das pessoas consumiria durante um período similar e sob circunstâncias similares e; continuar a comer mesmo se sentindo satisfeito, tender a comer sozinho, se sentir envergonhado, excessivamente culpado e depressivo depois do momento de compulsão. DSM-IV-TR.- Manual diagnóstico e estatístico de transtornos mentais. ArtMed, Porto Alegre, 2002.
(4) Secretaria de Vigilância em Saúde. VIGITEL 2006: Vigilância de Fatores de Risco e Proteção para Doenças Crônicas em Inquérito Telefônico. Brasília: Ministério da Saúde; 2019.
(5) CECCHETTO, Fátima Helena; BARBIERI PEÑA, Daniela; CAMPOS PELLANDA, Lucia. Insatisfação da imagem corporal e estado nutricional em crianças de 7 a 11 anos: Estudo transversal. Clinical & Biomedical Research, [S.l.], v. 35, n. 2, apr. 2015. ISSN 2357-9730. Available at: <https://seer.ufrgs.br/hcpa/article/view/51723>. Date accessed: 03 nov. 2021.
(6) Mindful Eating: A Guide to Rediscovering a Healthy and Joyful Relationship with Food (Revised Edition) (English Edition) , amazon.
(7) Intuitive Eating: A Revolutionary Anti-Diet Approach Evelyn Tribole M S R D & Elyse Resch M S R D F A D a
Quem escreve

Ana Barini
Ana Barini é Psicóloga Clínica pela PUC-SP. Trabalhou na clínica por 10 ano, especialmente com mulheres e suas questões ligadas à maternidade e reprodução assistida. É especialista e psicologia da Saúde e Psicologia obstétrica assim como em Clínica Interdisciplinar com o Bebê. Trabalhou atendendo mães, pais e bebês pela ONG Habitare no programa Einstein na comunidade de Paraisópolis (São Paulo). Deixou essa prática para chefiar um restaurante de comida natural em 2012. Além desse, chefiou outros dois restaurantes e um cozinha industrial e 8 anos depois e apaixonou pelo campo da Psicologia do Comportamento alimentar e pouco a pouco voltou à Clínica e à pesquisa. Hoje atende online e em Campinas -SP.