Respostas fáceis para questões complexas é um comodismo tentador. Se essas respostas identificam aquele que a profere com o lado desprivilegiado dentro de uma relação complexa, num aparenrente reconhecimento de humildade e fragilidade, então ainda mais convincentes elas serão. Tirar-nos desse comodismo e nos propor a pensar sobre o que afinal temos a ver com aquilo que por vezes facilmente temos respondido é o que busca o artigo de Wallesandra na Coluna Desha dessa semana.
Acontecimentos recentes e uma participação em evento(1) de discussão sobre o dia da consciência negra me suscitaram algumas reflexões. Mais do que resposta para uma boa pergunta quero oferecer incômodos. Por que incômodos? Porque as respostas que encontro para as minhas questões sempre são mais potentes quando surgem a partir de incômodos. Daí me peguei pensando que algumas perguntas deveriam passar pelo filtro de quem as faz. Um exercício mesmo de se questionar: “Afinal o que eu penso sobre o que estou perguntando?”.
Por exemplo, o que será que passa pela cabeça de quem diz coisas como: “Mas quem é branco no Brasil?”, “Eu saí do Brasil e me disseram que eu não sou branco” (que bom que você teve que sair do Brasil para perceber que não é branco), “No Brasil somos todos misturados”, “Eu tenho uma bisavó que era negra, não existe isso de racismo”, “Eu também tenho o pé na cozinha/senzala” (sério que isso é pra ser elogio?), “Racismo de verdade existe nos EUA e na África do Sul, no Brasil racismo é de mentira”, ”Ai, no Brasil o problema é social, se você é negro de classe média você não sofre racismo/sofre menos” (aviso que a questão social é indissociável da questão racial no Brasil), “Ai, mas os negros também são racistas”, “Ai, eu já sofri racismo por ser branque”, “Ai, mas existe racismo desde que existe humanidade”, “Ai, mas o novo presidente da Fundação Palmares também é negro e se posiciona contra o movimento negro e concorda que não existe racismo no Brasil”. Quando são mais “esclarecidos” saem coisas do tipo: “Ai, eu entendo a luta de vocês, mas dói ser acusado a todo momento de ser branco e ter privilégios”. Que dó!
Esses são os tipos de pseudoquestionamentos que ‘sou obrigada’ a ouvir e discutir. Obrigada entre aspas, porque ao contrário do meme que diz que “Eu não sou obrigada a nada” infelizmente eu sou. Nasci com uma marca na pele, queria que fosse a da Angélica, uma cor que ironicamente (no Brasil) só quem tem são os outros – negros, indígenas e asiáticos, uma marca que me dá o problemático ‘lugar de fala’ para versar sobre o racismo que não foi criado por nenhum desses grupos. Sabe por que problemático ‘lugar de fala’? Porque muitos leem e acreditam ser ‘lugar de alguém falar que não eu, embora eu até quisesse’. Aqui consigo ouvir: “Ai, é complicado quando quero somar na luta e alguém me diz que não é meu lugar de fala. Como ficam os aliados?”. ‘Lugar de cala’ como justificativa para o silêncio do ‘lugar de não é comigo isso aí’.
Esforcei-me para lembrar quantas vezes presenciei ou ouvi alguma pessoa branca reclamar que não aguenta mais ter que responder pelos atos ou falas de qualquer outra pessoa branca que teve repercussão na mídia. Dada a quantidade de pessoas brancas em evidência seria bem cansativo mesmo. Eis o momento que ocorre aquela básica ‘tirada da reta’: “Mas quem é branco no Brasil? Somos todos misturados”. E no seu grupo de amigos quando falam de racismo ou raça, quantas vezes sua opinião é pedida? O que você diz? Quantas horas/momentos num dia você pensa e fala sobre raça e racismo?
Armadilhas do racismo como o essencialismo (uma pessoa negra representa o grupo) e a miscigenação já foram deflagradas pelos estudos de gênero e raça, mas isso não é suficiente para que desavisados não caiam e levem consigo alguns inseguros. E aqui então também ouço perguntarem: “Mas, pra você, uma pessoa negra que é contra movimento negro, não é uma capitã do mato?”. Devolvo a pergunta dizendo: Uma, duas, três pessoas negras que são ‘contra’ o movimento negro e validam as centenas de milhares de pessoas brancas que são contra esse movimento e suas conquistas são realmente o problema?
O racismo é um problema criado por brancos e somos nós os outros que tivemos que discutir, estudar, compreender, explicar e ensinar didaticamente os efeitos desse sistema. Ai de nós simplesmente não termos paciência de explicar com carinho e atenção. A selvageria sempre estará colada a um corpo negro. Não sabe explicar sem se irritar: Selvagem! Reage ao ser violentado: Selvagem! A acusação de vitimismo é certa maneira uma promoção à humanidade.

Dá um cansaço ‘ter’ que ficar explicando como o racismo estruturou e estrutura nossas relações e desigualdades na sociedade brasileira (pra ficar localizado no globo) num almoço de domingo. Domingo! Diz a lenda que o mundo foi criado e no sétimo dia houve descanso. Convencionou-se que esse dia foi o domingo. Descanso para o criador branco, barbudo, loiro e dos olhos azuis. Aquele que você vê no santinho e calendário de vó, não é mesmo? Aqui já ouço uma acusação de racismo reverso ser evocado contra mim.
Esse é o menor dos meus cansaços, pois não há descanso em Paraisópolis, Santo André e nem em São Vicente. As crianças que ‘encontraram’ as ‘balas perdidas’ no Rio de Janeiro também não tiveram descanso. Seus familiares tentando que elas tivessem um destino diferente do programado pelo Estado, não tiveram e nunca terão descanso. Ao invés disso o rosto da vítima aparece ao lado de uma manchete que é preciso ler com atenção para que você não a responsabilize pela própria morte.
Sim, as vítimas do Estado são responsáveis por sua própria morte, principalmente quando são negras. Se moram em favelas, não resta dúvida que são culpadas por estarem na mira da arma da polícia. Eis que alguém surge com o ‘raciocínio’ mais cretino: “Ninguém quer saber dos policiais que morrem todos os dias”. Eu arrisco dizer que nem você se importa e só diz isso automaticamente na tentativa de anular qualquer pensamento crítico e implicado sobre o problema. O que você está fazendo pelos policias que são mortos todos os dias e que você insinua se importar? “Ah, mas quem mata são policiais que também são timidamente dito negros”.
O crime perfeito é aquele que finge não ter nome e o criminoso perfeito é aquele que não tem sua cara estampada no jornal, não é mesmo? Não foi o policial negro ou branco quem assassinou pessoas, foi o Estado. O Estado o treinou em um cenário escrito Favela e dizendo que era pra entrar matando e atirando na cabecinha. Quando esses profissionais da morte atuam estão perdendo emprestando seu corpo ao Estado. São atores no sentido macabro da palavra, pois um ator e uma atriz emprestam seu corpo a uma personagem.
Acabei por trair meu objetivo e acabei respondendo algumas perguntas. Força do hábito de sobrevivência. Lembrei que aparece de tempos em tempos uma frase: “Sorte dos brancos que os negros só querem igualdade, pois se quisessem vingança seria pior”. A questão é que por igualdade entende-se que seria fazer o mesmo que fazem com os negros. Os brancos em questão são os que possuem o Estado em suas mãos, os brancos que mandam no país (não estou falando dos encardidos(2), da classe média e média-alta que se acham a elite. Vocês só estão protegidos mas não mandam. Igualdade seria seu extermínio sistemático e legitimado pela sociedade. Coisa de gênio isso de agrupar o maior número de pessoas na classe média e média-alta. Quanto mais gente pensa que é da elite cada vez mais a real elite está protegida. Fica assim mais fácil para o Estado exercer o necropoder desvelado por Mbembe, a política de higienização e extermínio contra os corpos destituídos de humanidade.
O outro oferece risco ao que é seu, às suas conquistas. O baile funk na favela é lugar de drogas e criminosos (as festas do Mackenzie e da PUC não) logo o extermínio dos criminosos que vão a esses lugares está justificado. Campo fértil para a necropolítica. Ai surge outra frase cretina, prova de nenhum pensamento crítico, rec-repete de Zap Zap (na verdade vem de antes do Zap): “Tem dó de bandido? Leva pra casa. Direitos Humanos para Humanos Direitos”. Que preguiça!
Penso com meus botões: “Não é todo mundo que tem acesso às informações que você teve. É preciso compartilhar com paciência. Nem todo mundo parte do seu lugar de experiência do mundo o que, consequentemente, te dá um olhar específico sobre o que você aprende”. É por isso que os outros estão cada vez mais cansados. Queria eu ter o privilégio de não pensar em questões de raça e racismo como clamam os ‘humanistas’. E olha que esse ano na minha timeline não teve Morgan Freeman. E então? Vai pensar o que você tem a ver com isso?
Para ler e debater:
Carneiro, Sueli A. – A construção do outro como não-ser como fundamento do ser.
Mbembe, Achille – Necropolítica.
Schucman, Lia Vainer – Entre o encardido, o branco e o branquíssimo: branquitude, hierarquia e poder na cidade de São Paulo.
NOTAS DE RODAPÉ
(1) Participei de uma aula aberta na Casa do Saber intitulada Negro é Raiz da Liberdade ao lado da cientista social Nathália Oliveira (INNPD – Iniciativa Negra por uma Nova Política sobre Drogas) e do publicitário e marqueteiro Will Marinho. Na ocasião compartilhamos algumas reflexões sobre as origens da criminalização de pessoas negras na sociedade brasileira.
(2) Referência ao livro Entre o encardido, o branco e o branquíssimo: branquitude, hierarquia e poder na cidade de São Paulo de Lia Vainer Schucman já citado em textos anteriores.
COMO CITAR ESTE ARTIGO | RODRIGUES, Wallesandra. Quando o assunto é raça e racismo, o que eu tenho a ver com isso? Coluna Desha, 16 de dez. de 2019. Disponível em: <https://coluna.desha.com.br/quando-o-assunto-e-raca-e-racismo-o-que-eu-tenho-a-ver-com-isso-wallesandra-rodrigues/>
Quem escreve

Wallesandra Rodrigues
Cientista Social pela Fundação Escola de Sociologia e Política de São Paulo - FESPSP, mestranda na área de Ciências Humanas e Sociais na Universidade Federal do ABC - UFABC, desenvolve pesquisa com enfoque na situação de mulheres negras encarceradas em São Paulo. Integrante do Coletivo 21 de Novembro - 21N de alun@s negr@as da FESPSP. Membra do Grupo de Estudos Resistência (UFABC). Uma mato-grossense de "tchapa" (nascimento) que já foi bem nômade nessa vida. Por enquanto aqui.