Estreando sua colaboração como colunista Desha, Myrna Coelho fala sobre os desafios de receber crianças e adolescentes para atendimento, as possibilidades que esses encontros proporcionam quando conduzidos com a mesma abertura e curiosidade daqueles que estão a descobrir o mundo e, em contrapartida, o risco de se exercer uma clínica que tão somente reproduza os mesmos processos a que esse público é submetido, em uma sociedade repleta de verdades e valores preestabelecidos.
Das três transformações
Três transformações do espírito vos menciono: como o espírito se muda em camelo, e o camelo em leão, e o leão, finalmente, em criança. Friedrich Nietzsche
A proposta desta coluna é nos aproximar de discussões do campo da infância e da adolescência a partir de um ponto de vista clínico fenomenológico, crítico, antimanicomial e militante do ECA. Eu convido-os a olhar para a infância e para a adolescência de outro modo, por um outro ângulo que não o da “era da técnica”. Para acurarmos nosso olhar clínico para essa população, faz-se necessária uma série de reflexões, especialmente sobre a nossa historicidade e sobre a nossa cultura. Esse olhar pretende abrir novas possibilidades de encontros terapêuticos, de fazeres analíticos que de fato possam aproximar-se ao máximo de práticas emancipadoras e de exercícios de liberdade, como diria Tosquelles (1993).
Receber uma criança ou um adolescente para atendimento é partir da queixa de alguma restrição, como nomeamos em fenomenologia. Essa é uma oportunidade única de operarmos duas grandes revoluções, embora isso possa não parecer num primeiro momento.
A primeira é abrir espaço para que essa restrição que se apresenta seja ressignificada, e não superada, desconstruída, modulada ou destruída.
A segunda é operar um novo olhar, ampliado, sobre como os acontecimentos do mundo da infância impactam a nós e a toda a sociedade: as crianças e adolescentes nomeiam o que tentamos esconder.
Quando entregamos para as crianças e os adolescentes o mundo que construímos para eles, entregamos colapso climático, crise do capital, fome e guerras. A esse ritual de chegada, mirando esse “presente de grego”, todos os envolvidos ficam impactados. Alguns disfarçam bem, outros insistem em “por quês”. E, ao despencarem nessa crua realidade sem disfarces, as crianças e os adolescentes nos exigem disponibilidade para falarmos e pensarmos sobre isso. Eles nos exigem em nossa responsabilidade perante o caos que instauramos.
Algumas linhas de atendimento às crianças e aos adolescentes preconizam discursos e dispositivos que os retirem da angústia das discussões profundas, das discussões que tocam os adultos, que os deixam constrangidos. Nossos pacientes sabem muito bem como são os adultos e, quando chegam ao psicólogo, esperam encontrar alguém minimamente disposto a falar sobre as complexidades e contradições do mundo. Infelizmente, tem sido comum operar os discursos de modo a “normalizar e acalmar as paixões” dessa sensível população.
É um prazer poder discutir com vocês sobre esse tema tão complexo e polêmico. Interessante ser assim. Quando a infância e a adolescência tornaram-se complexas e polêmicas? Será que esse fenômeno relaciona-se com a desnaturalização da vida e da morte? Há muito o que falar sobre isso, mas para começar eu gostaria de me ater ao nosso papel nessa complexificação.
Os “saberes psi” tomaram para si discursos e práticas sobre esse período da vida a fim de, entre outras intenções, criar um mercado. Não só isso, todo o campo da saúde mental inventou-se tomando a loucura ou o que considerava desviante para si como “coisa científica” a fim de justificar sua existência.
Michel Foucault, em “Doença Mental e Psicologia”(2000), faz um breve e delicioso relato sobre isso, que ele aprofundará posteriormente na “História da Loucura na Idade Clássica” (1978).
Ao tomar para si a verdade sobre os seres humanos, os “saberes psi” constituem-se como ciência a partir de práticas morais. Ou seja, todo o discurso científico – dito baseado em evidências – e em que a saúde mental costuma fundamentar-se é, na melhor das hipóteses, uma narrativa moral com argumentos disfarçados.
A fenomenologia ajuda-nos a perceber essa dimensão. Quando questionamos os preâmbulos a priori da saúde mental, vemos um conjunto de dispositivos complexos e inter-relacionados, cujo objetivo principal é o controle e a manutenção do sistema capitalista (Basaglia, 1968).
Mas o que a infância tem a ver com isso?
Não à toa temos a explosão de diagnósticos e de intervenções sobre as crianças e sobre os adolescentes. Com a desculpa de uma boa educação e com o apelo do discurso da normalidade/anormalidade, dispositivos operam sobre o início da existência, moldando caminhos garantidos para um “sujeito bem sucedido”. Esses dispositivos configuram-se como práticas não apenas psis, mas também educacionais e jurídicas.
Temos muitos exemplos desses dispositivos para discutirmos aqui oportunamente: hiperatividade, déficit de atenção, transtorno opositor-desafiador, transtornos vários, suicídio, bullying são apenas alguns dos modos de organização do discurso desses saberes sobre a infância e a adolescência que – apresentados como solução – são, de fato, a causa de muitos problemas dessa população.
Isso sem mencionarmos a publicidade e o consumo, tratados com naturalidade quando, na verdade, tensionam e, esses sim, criam sofrimento, desempoderam e impedem que a autonomia desenvolva-se em profundidade.
Para além disso, temos a relação dos “saberes psi” com a culpabilização dos adultos, especialmente das mulheres. A passagem do espaço público para o espaço privado como lugar de exercício das relações entre as pessoas , como diz Hannah Arendt (1958), destituiu-nos da compreensão de que “é preciso uma aldeia” não só para cuidar de uma criança, mas também para cuidarmos de nós mesmos. Lugar de diferenciação e de existência do um, a coletividade abre espaço para a existência da diversidade e da contradição. Um mundo que problematiza a contradição e o conflito perdeu a oportunidade de existir em sua complexidade.
E é esse o fundamento que nossos clientes crianças e adolescentes trazem em suas questões, tanto as manifestas quanto as intuídas. De grande sensibilidade, eles percebem-nas, mas muitas vezes não nomeiam todo esse invólucro ideológico que os oprime. Quando nos encontram, isso pode ser de natureza regradora ou de natureza regadora. Regar a crítica, o exercício do pensar, a potência das descobertas traz muito mais sentido ao desenvolvimento de práticas de auto-cuidado e de proteção do que simplesmente discorrer sobre regras vazias. Essa discussão é feita há muito tempo no campo da sexualidade e das drogas. Uma prática clínica que seja de natureza “opositora-desafiadora” ao encontro sutil e nobre da intimidade do outro não se sustenta como estimuladora de respeito. Esse é o lugar por excelência do abuso de poder na psicoterapia (1978). E aí mora nosso desafio.
Como lançar mão das verdades constituídas que me retiram da tensão e da aventura que é me encontrar de fato com outra intimidade? Sim, porque para isso eu preciso ter a coragem e a audácia de reencontrar minha intimidade com verdade. Não essa verdade ilusória das ciências, mas a verdade de quem olha para si sem medo do que pode encontrar, disposto a cuidar do que vem, não importa o quão difícil isso seja.
Disponibilidade de aceitar o tempo, que não é o do nosso desejo, mas o do mundo-vida, o tempo em que as coisas se dão.
Sem essa disponibilidade de olhar para nós mesmos com a curiosidade e a disponibilidade das crianças e dos adolescentes, não temos fundamento para essa prática.
Por isso, atender crianças e adolescentes é tão difícil, e não porque precisamos “lidar com os pais”. Os responsáveis estão, na sua grande maioria, à deriva num mar de angústia e de incertezas, com muito medo. Medo que se traduz em modos mais inseguros ou mais impositivos, mas sempre clamando por parceria. Acolhê-los é, também, um exercício de se despir de julgamentos e de defesas e nos lançar de coração aberto para uma conexão delicada, sensível e muito difícil. Pois as crianças e os adolescentes despertam em nós nossa infância e nossa adolescência, e tudo o que sofremos nesse período.
Costumo dizer que, se há uma minoria-maioria que sofre generalizadamente, essas são as crianças. Impressionante como até as coisas mais simples lhes são negadas. Subir no ônibus? Acompanhar as discussões dos adultos? Ter de dar conta de seguir um tempo que não faz sentido algum? Não ter espaço de discussão ou de cuidado numa linguagem compatível? Os adultos estão sempre falando com as crianças e os adolescentes de modo desafetado, porque as práticas psi ensinaram que eles devem mentir e fingir que são seguros, que acreditam nas regras e nos modelos que seguem.

Um conceito que me ajuda muito a pensar a infância e a adolescência é a “demolição”, de Marcelo Viñar (1989). Ele fundamenta esse conceito a partir das sequelas psicossociais causadas por conta da tortura em presos políticos, na última ditadura uruguaia. Segundo o autor, a demolição é o resultado de três experiências. A primeira é a destruição da pessoa, dos seus valores e convicções. A segunda é uma desorganização da relação da pessoa com ela mesma e com o mundo. A terceira é uma tentativa de saída: como resolução dessa crise instaurada, a pessoa em sofrimento organiza uma conduta substitutiva de acordo com os valores de seu torturador. Um bom exemplo desse processo é tratado por Pedro Almodòvar no filme “La piel que habito” (2011).
Penso que esse conceito cabe muito bem para definir o que costumamos nomear como “processo de educação”. A idéia de educar, dar limites, preparar para a vida adulta costuma ser, na maioria das vezes, baseada na fantasia de que as crianças e os adolescentes são movidos por paixões perigosas que precisam ser domadas, domesticadas e extirpadas. O controle de seus corpos e mentes é fundamental para sua boa adequação à sociedade do capital como “gado”, de modo que o que forma esse “sujeito bem sucedido” é justamente sua adequação à vida capital. Como trabalhador e como consumidor, especialmente. As práticas psi-jurídicas e educacionais tomaram esse fundamento como verdade e construíram dispositivos a partir daí, que continuam sendo utilizados com uma nova roupagem vez em quando.
Óbvio que, como todo processo de traumatização política, esse deixa inúmeros vestígios. Mas o “pulo do gato” dessa estratégia é, justamente, sua iatrogenia: daí que ela se mostra perfeitamente neoliberal. Ou seja, cada nova sequela dessa “demolição” é nomeada como uma doença, um transtorno ou coisa que o valha, para se criar mais um tentáculo de novas estratégias de demolição. Sabendo disso, é preciso decidir para que lado nossa clínica aponta: manutenção ou emancipação?
Portanto, as crianças nos fazem o convite para olharmos novamente para as verdades que compramos. E quem não está aberto a isso não tem clínica para oferecer, não tem afeto para conectar e nem liberdade para exercitar.
Então me parece que o mais desafiador dessa clínica é, justamente, permitir-se ter um encontro com ela genuíno. Porque dela a gente nunca sai do mesmo modo que entrou.
COMO CITAR ESTE ARTIGO | COELHO, Myrna. Recebendo crianças e adolescentes para atendimento psi – um ponto de vista fenomenológico. Coluna Desha, 28 de out. de 2019. Disponível em: < http://coluna.desha.com.br/recebendo-criancas-e-adolescentes-para-atendimento-psi—um-ponto-de-vista-fenomenologico-|-myrna-coelho />
Quem escreve

Myrna Coelho
Profa. Dra. Myrna Coelho, psicóloga clínica, cofundadora do curso “Fenomenologia Crítica: ações clínicas, educacionais e institucionais”, do Instituto Sedes Sapientiae. Decidiu recomeçar a vida do outro lado do oceano, onde segue atendendo seus pacientes e dando supervisão on-line. Atualmente pesquisa psicoterapia on-line.
Dalva Chaves Pereira
out 28, 2019 at 21:47
Excelente texto, reflexões absolutamente necessárias em tempos de medicalização como padrão de controle. Parabéns e êxito.