Este texto trata das vias metodológicas que resultaram em uma pesquisa(1) acerca da história da proscrição de candidatos gays à formação em psicanálise oferecida pelas instituições afiliadas à Associação Psicanalítica Internacional (IPA). A pesquisa tratou-se de minha dissertação de mestrado, orientada pelo Prof. Dr. Daniel Kupermann, defendida na Universidade de São Paulo em 2014 e publicada em livro pela Editora Annablume em 2016(2).
A pedra de toque desta pesquisa, pelo menos a que pode ser mais explicitamente mencionada, iniciou-se em 2009, quando de meus primeiros passos adentro do movimento intelectual plural – teórica, técnica e institucionalmente – a que chamamos psicanálise. Era eu, então, um graduando de psicologia na Universidade de São Paulo, em Ribeirão Preto. Logo nos primeiros estágios de atendimento clínico, tutelados pela Sociedade Brasileira de Psicanálise de Ribeirão Preto(3) (SBP-RP), que oferecia as supervisões clínicas, confrontei-me com o pensamento (então?) dominante acerca da homossexualidade. Um de meus pacientes do estágio em clínica psicanalítica era um garoto que mantinha um namoro à distância com outro rapaz, enquanto cursava uma graduação bastante reputada em uma das Universidades da cidade(4). Seus colegas de classe sabiam de sua modalidade erótica, a qual não fazia questão de esconder, dado que vinha de um ambiente menos provinciano e sua família convivia tranquilamente com seu namorado.
Porém, seu cotidiano na graduação era de um intenso isolamento e constante injúria veiculada pelos colegas de classe. Pensava em abandonar a carreira, cursar algo mais condizentes aos preconceitos (de então?) dirigidos aos homens homossexuais, como uma carreira em artes. Buscava, em suma, um ambiente que lhe parecesse mais hospitaleiro, impotente que se sentia frente à injúria. Quando relatava as queixas apresentadas pelo paciente ao supervisor ipeano, era sensível o quanto havia um total descrédito à inospitalidade do ambiente em que o garoto estava inserido e, por outro lado, o ímpeto de se buscar os “fatores etiológicos” de sua escolha de objeto.
Esta anedota talvez seja familiar a muitos daqueles que há mais de 10 anos estudam, praticam e circulam pela psicanálise, especialmente em seus circuitos de formação “oficiais”. A mim, disparou o impulso de investigar mais detidamente os porquês de aqueles supervisores respaldados por uma transferência tão intimamente ligada a Freud correrem para a presunção de que a escolha homossexual seria causa e consequência dos sofrimentos de seus e do meu paciente.
Com efeito, desenvolvi uma pesquisa em teoria psicanalítica que me qualificou ao mestrado. Porém, logo nos primeiros meses, com o estudo da literatura, encontrei um ponto ainda mais nebuloso no conjunto de arquivos sobre a homossexualidade na psicanálise: a suspeita atroz de que as instituições psicanalíticas filiadas à IPA, como a SBP-RP que me oferecia as supervisões, ativamente negavam a admissão de candidatos abertamente homossexuais.
Logo de saída, nas primeiras leituras, foi possível perceber o quanto o tema era rodeado de certo mistério e fascínio. Militantes do movimento LGBT constituído na década de 70, especialmente nos Estados Unidos e após o levante de Stonewall, tomavam como alvo de denúncias as instituições que encabeçavam as formas mais explícitas da exclusão e da produção de discursos injuriosos contra as minorias: a Igreja, o Exército e o poder psiquiátrico. Boa parte destas denúncias ganhavam registro na mídia da época, e não deixariam de progressivamente surtir efeito no interior destas mesmas instituições. Diga-se de passagem, a prática silenciosa de exclusão costumeira no Exército, batizada de don´t ask, don´t tell (não pergunte, não conte), não deixou de servir também à realidade de alguns membros e candidatos das Sociedades psicanalíticas(6).
O contorno metodológico para a pesquisa obedeceu, então, uma diretriz que condizia com a natureza do objeto: um acordo tácito e histórico entre os atores das Sociedades psicanalíticas, respaldado pelos consensos teóricos e clínicos psicanalíticos (da época?), mas nunca oficializado enquanto uma diretriz explícita na formação psicanalítica. Em síntese, a rigor, o objeto da pesquisa era uma prática silenciosa de proscrição, batizada por Elisabeth Roudinesco(7) de “regra não-escrita”, termo que por sua vez serviu de título à dissertação.

Com efeito, a questão metodológica tomou, finalmente, a forma final. Como recolher e escrever a história de uma regra não-escrita? Como positivar o silêncio em torno de uma prática que se envergonha de si própria e se esconde, mantendo-se atuante nas cercanias protegidas daquelas que até pouco tempo atrás eram a única via de transmissão e formação psicanalítica?
A resposta que me pareceu apropriada foi a de que era preciso reunir os arquivos das margens, do entorno do silêncio. Do barulho que cercava a prática exclusória; dos breves lapsos de fala e de escrita que partiam do núcleo institucional: entre tergiversações, denúncias, falas abertamente preconceituosas, ações da militância organizada e, finalmente, uma declaração oficial e explícita de não-discriminação(8). A regra não-escrita, apesar de nunca explícita, não deixava de produzir inscrições.
Os primeiros passos na busca destas inscrições foram alguns recortes. Como não havia sido produzida nenhuma pesquisa sistemática sobre a exclusão de candidatos gays das fileiras de formação psicanalítica, em primeiro lugar, contentei-me em reunir os arquivos que já haviam sido disponibilizados a respeito da prática. Travei contato com alguns atores que tomaram a frente nas denúncias de exclusão, mas não para obter entrevistas formais, mas para encontrar orientações na busca por mais arquivos.
Com sorte, um deles, Ralph Roughton, o primeiro psicanalista a se dizer gay ao público ipeano em um dos Congressos internacionais, forneceu-me uma pasta com tudo o que tinha guardado em seu percurso institucional. Roughton, que já era um analista didata à época de sua “saída do armário”, tornou-se um pioneiro também na virada da Associação Psicanalítica Norte-americana (APSaA), associada independente da IPA, na direção de tornar a militância LGBT uma aliada do movimento psicanalítico na américa do norte e estabelecer um comitê de ação institucional LGBT dentro da Associação, o qual Roughton presidiu.
Restringi também a investigação à proibição que incidia em candidatos homossexuais masculinos. Quase todos os materiais publicados na pesquisa preliminar pelos arquivos indicavam que a exclusão tomava como alvo mais homens que mulheres, mas a razão para isso não foi um suposto privilégio feminino na seleção. Em primeiro lugar, desde sua fundação e até finais do século passado, a formação psicanalítica oferecida pela IPA era de interesse majoritariamente masculino. Em segundo, e mais especificamente, a orientação homossexual feminina não parecia escandalizar tanto os agentes institucionais como a masculina. É o que aponta uma supervisora da Associação Psicanalítica Britânica (BPS), confrontada por sua supervisionanda sobre a admissão de homossexuais, em torno de 1994:
Bem, de qualquer maneira, nós não aceitamos homossexuais na formação (…) bem, certamente não homens homossexuais. Até aceitaríamos uma mulher se ela fosse bastante discreta(9) .
Por último, e pela já mencionada razão de a formação psicanalítica, até muito recentemente, ser monopolizada pela IPA, restringi-me aos arquivos referentes às atitudes e razões exclusórias praticadas pelas Sociedades representantes da Associação. Certamente o estabelecimento de formações em instituições alternativas, especialmente após a crescente popularização dos círculos lacanianos e sua atitude mais permissiva quanto à entrada de psicanalistas homossexuais(10), contribuiu para a maior abertura das Sociedades ipeanas. Porém, não parece ter sido por diretamente militarem pela revisão das homofobias oficiosas, mas por contribuírem criticamente para a crise que acometeu as instituições “oficiais” desde o final do século passado(11).
O resultado da pesquisa preliminar nos arquivos revelou, logo de saída, o predomínio das inscrições acerca da discriminação em território norte-americano, dada a popularidade que a psicanálise havia obtido naquele país na década de 60 até a década de 80, tornando-se um sinônimo da psiquiatria e do status quo dominante em moral sexual. Se é certo dizer que os norte-americanos não era menos violentos com os homossexuais, cabe a ressalva de que as práticas segregatórias do país sempre foram mais explícitas, vocais e oficialmente respaldadas que outros países no Ocidente. Os psicanalistas, como porta-vozes das normas de comportamento moral e saúde mental, não economizavam em adjetivos injuriosos e raciocínios cientificistas que se alinhavam ao clima macarthista que se instalou no país no pós-guerra. O movimento de direitos civis e a militância negra e LGBT organizou-se proporcionalmente de tal maneira que é compreensível que os relatos de exclusão tenham sido produzidos de forma numerosa na região. E é compreensível também que os psicanalistas norte-americanos tenham liderado, da mesma forma que hoje nos parece exemplar nas políticas de visibilidade identitária e suas razões liberais (no sentido econômico, especialmente), os movimentos de explicitação e enfrentamento da homofobia psicanalítica(12).
De certa forma inspirados nos movimentos de denúncia dos psicanalistas norte-americanos, as associações defensoras dos direitos LGBT parecem ter encontrado no modelo daquele país um exemplo de procedimento. Assim, boa parte das denúncias de exclusão e coleta de relatos de candidatos recusados à formação com base em suas orientações sexuais foi feita mediante a ação militante destas associações no continente europeu. Tais associações, com efeito, pressionavam as Sociedades psicanalíticas, por exemplo, na Grã-Bretanha, Alemanha, Suíça, Áustria e Noruega(13). Nas Sociedades psicanalíticas francesas, a argumentação dos porta-vozes institucionais revelou-se mais sofisticada, apesar de cínica. Ao mesmo tempo em que era dito que não se selecionava candidatos com base em caracteres identitários(14), psicanalistas ipeanos – de uma forma semelhante ao que ocorria nos Estados Unidos – reproduziam em massa o argumento de que a homossexualidade, enquanto vicissitude do narcisismo(15), com sua positivação no tecido social, tendia ao colapso da civilização.
Os argumentos paroquiais e moralistas dos psicanalistas mereceram um capítulo à parte na dissertação, dado que a razão teórica para a exclusão de candidatos gays, apesar de nunca ter sido de fato explícita, parecia assentada em consensos psicanalíticos que por si só merecem a dedicação da historiografia. Desde as críticas de Freud à moral sexual, passando por sua admoestação de que homossexuais não deveriam ser excluídos da formação psicanalítica por suas modalidades eróticas(16), há um percurso do pensamento psicanalítico que vai desde a posição marginal do freudismo até sua popularização, que se reflete explicitamente no recrudescimento da homofobia.
Por último, cabe abordar também uma questão frequentemente endereçada à pesquisa e a seu método. E quanto à posição particular do Brasil na questão da proscrição de candidatos homossexuais? Dado que a grande maioria dos arquivos foram produzidos como resultado das pressões da militância LGBT organizada e de que o movimento identitário no Brasil, à parte algumas atitudes pioneiras, não reuniu a força que a norte-americana havia angariado no final do século passado, os relatos sobre a homofobia são extremamente escassos no país. Excetua-se uma fala interessante de Luis Meyer, reportada por Luiz Carlos Menezes, em uma reunião de entrevistadores acerca dos critérios de seleção ocorrida em meados da década de 90. O psicanalista didata havia causado mal-estar entre seus pares por advogar a favor da admissão de um candidato abertamente homossexual: “Havia uma atitude da IPA em relação a isso”, assumiu Menezes(17).
Esta pesquisa foi concluída há cinco anos, e cabe perguntarmos o que mudou desde seu início, em 2011. Aparentemente, as Sociedades psicanalíticas internacionais e também as brasileiras não apenas se abriram mais à presença de analistas e candidatos gays, homens e mulheres. Iniciativas como grupos de pesquisa e estudo acerca da homossexualidade e também da homofobia tenderam a metabolizar, dentro do corpo da IPA, aquilo que antes era expulso e silenciado. Nos Congressos Internacionais da IPA, é comum encontrar painéis e mesas compostas por psicanalistas não apenas abertamente gays, mas também transexuais, renovando a curiosidade e o ímpeto investigativo que marcou a psicanálise desde seu berço, por tantas décadas obturada pelo moralismo alinhado ao poder e ao status quo.
A questão, agora que a psicanálise – sem ter tido outra alternativa – se volta à margem, parece menos voltada à questão identitária, mas tão mais política quanto a que norteou esta pesquisa. O que está em nosso horizonte de ação no sentido de lutar contra a escalada autoritária que volta a mostrar sua face mais brutal?
NOTAS DE RODAPÉ
(1) A pesquisa contou com o apoio do CNPq.
(2) Bulamah, L. C. (2016). História de uma regra não escrita: a proscrição da homossexualidade masculina no movimento psicanalítico. São Paulo: Annablume.
(3) Núcleo de transmissão e pesquisa psicanalítica “oficial”, no sentido de ser um capilar da (Associação Psicanalítica Internacional, IPA na abreviatura em inglês, que usaremos neste texto ao nos referirmos às associações internacionais).
(4) A história aqui é contada de maneira relativamente alterada, para preservar o sigilo dos envolvidos.
(5) Nas últimas horas daquela noite de 27 de junho de 1969, que viria a ser comemorada todos os anos, em quase todo o mundo ocidental, alguém gritou alto: “é a revolução”. Enquanto o reforço policial bloqueava a rua e dispersava a multidão que se aglomerava aos berros em frente àquele bar em Greenwich Village, Nova Iorque, policiais que lá se abrigavam contra a fúria da massa esperavam a chance de sair. Para a surpresa da tropa de choque, a turba dispersada voltava a se formar e cercava-os por trás e, dispersada novamente, reiniciava o ciclo quase interminável. De torsos colados e expondo seus saltos altos, um cordão de drag queens entoava cânticos licenciosos e provocativos para o batalhão armado. “Foi um deliciosamente esperto e desdenhoso contraponto à força bruta da polícia, uma tática que transformou o outrora tradicional combate macho, olho-por-olho, e que proveu pelo menos o vislumbre de um diferente e revelador tipo de consciência”. Cf. Duberman, M. (1994). Stonewall. New York: Plume.
(6) Drescher, J. (2008). Don´t ask, don´t tell: a gay man´s perspective on the psychoanalytic training experience between 1973 and 1991.
(7) Roudinesco, E. (2010). Em defesa da psicanálise– ensaios e entrevistas. Rio de Janeiro: Zahar.
(8) Em 2002, depois de diversas petições de um grupo de psicanalistas norte-americanos, a IPA editou um texto em seu corpo de regras intitulado “Política de não-discriminação”. Neste, lemos: “Na base de seu compromisso com valores éticos e humanísticos, a IPA se opõe a discriminações de qualquer tipo. Isto inclui, mas não se limita a, qualquer discriminação baseada em idade, raça, gênero, origem étnica, crença religiosa ou orientação homossexual [grifos nossos]. A seleção de candidatos para a formação psicanalítica será feita somente com base em qualidades diretamente relacionadas à sua habilidade de aprender e trabalhar como um psicanalista. Adiante, é esperado que esse mesmo padrão seja usado na indicação e promoção de membros de competências educacionais, incluindo analistas didatas e supervisores”. Este texto, que por si só positiva a prática exclusória pela via negativa, pode ser conferido no próprio site da IPA, em www.ipa.org.uk.
(9) Ellis, M. L. (1994). Lesbians, gay men and psychoanalytic training. Free associations, n. 4, v. 4, p. 513.
(10) Cf. Roudinesco, E. (2010). Em defesa da psicanálise– ensaios e entrevistas. Rio de Janeiro: Zahar.
(11) Cf. Cerqueira, G. (Org.). (1982). Crise na psicanálise. Rio de Janeiro: Graal.
(12) Não era raro encontrar relatos de psicanalistas europeus e latino-americanos acusando os norte-americanos de exportarem sua moral sexual para os outros países.
(13) Cf. Rauchfleisch, U. (1993). Homosexuality and psychoanalytic training. Forum der psychoanalyse, n. 9, v. 4.
(14) Botella, C. (2001). A response to Ralph Roughton´s paper. International psychoanalysis: the newsletter of the IPA, n. 10, v. 1.
(15) Botella, C.
(16) Cf. Spiers, H. & Lynch, M. (1977). Gay rights Freud. Body politic (Toronto, Canada)
(17) Bolognini, S., Horta, A., Helena, B. & Maria, F. (2008). Debate – a análise didática. Jornal de psicanálise, n. 41, v. 74, p. 39.
Quem escreve

Lucas Charafeddine Bulamah
Lucas Charafeddine Bulamah é psicólogo e psicanalista. Mestre e doutorando pelo Instituto de Psicologia da Universidade de São Paulo, Departamento de Psicologia Clínica. Autor do livro História de uma regra não-escrita: a proscrição da homossexualidade masculina no movimento psicanalítico (Annablume). Membro do psiA – Laboratório de Pesquisas e Intervenções em Psicanálise.