É verdade que já faz algum tempo, mas fui à pré-estréia do filme Pantera Negra e me deparei, como de costume nesse tipo de segmento de filmes, com uma sala de cinema lotada de nerds, mas nerds negrxs em sua maciça maioria. Eu me senti num lugar muito confortável e impactante para mim. Eu não era mais a única pessoa negra ou uma das poucas num espaço de cultura de qualquer gênero, no caso cultura pop.
Meu companheiro e eu chegamos alguns minutos antes do início da sessão, tomamos nossos assentos e conversávamos como de costume. Os mais variados assuntos como expectativas sobre o filme, spoilers pelos quais passamos ilesos até aquele dia, detalhes das HQs que podem ou não aparecer na versão cinematográfica e uma leitura dos outros expectadores presentes, enfim, uma conversa pré-filme normal, pra nós pelo menos. Ao nosso lado, mais precisamente ao meu lado direito estava uma mulher nos seus 40 e poucos, quase cinquenta talvez, sua filha e um rapaz que entendi ser o namorado da filha.
Enquanto conversava com meu companheiro, ouvia fragmentos de conversas da vizinha e seus acompanhados. Inicialmente falavam do incômodo de não terem conseguido comprar um assento junto ao seu filho que estava algumas fileiras à frente e abaixo. Ela era de longe a mais incomodada, mas não somente com isso. Ela estava insatisfeita com seu próprio lugar, que embora estivesse numa fileira das mais altas e centrais da sala havia “cabelos” que a impediriam de enxergar a legenda. A filha que parecia muito “acostumada” com a mãe e suas questões sugeriu que esperassem o filme começar e não havendo ninguém nos assentos da ponta se mudassem. A mãe fez pouco caso da sugestão, deixou claro que tudo bem ela não enxergar a legenda, pois além de não conhecer a história ela poderia compreender Inglês se prestasse atenção. No que a filha conversando com o namorado comenta que acha legal ter dreads no cabelo – como os do rapaz sentado à frente de sua mãe – e provoca a mãe, algo que ela já parece ter feito em outras ocasiões, pergunta o que acharia se ela fizesse dreads no cabelo. A mãe com toda a força do seu ser puxa da alma um: “Eu odeeeeeeio dread. Acho horrível”.
A filha curtindo a provocação, desses testes que os filhos geralmente lançam sobre pais e irmãos, ri da resposta da mãe e pergunta qual o problema, o porquê dela não gostar de dreads. “Porque sim. Eu odeeeio. Acho horrível” responde a mãe em vibrato que emana de todo seu corpo. Minha vizinha de assento fazia questão de que sua voz sobressaísse às outras conversas paralelas quando reclamava antes, mas especialmente nesse momento. Tanto que me senti naqueles momentos de comédias pastelão ou o Chaves, nos clássicos momentos em que ele está falando mal do Seu Madruga ou outra personagem e todo o ambiente se silencia ouvindo apenas a voz dele e o que supostamente deveria ser uma opinião secreta. Com a diferença que a “opinião secreta” não tinha nenhuma tentativa de se manter sigilosa. Ao contrário, nem precisava de tanto estímulo como o proporcionado pela filha para se revelar. Meu companheiro, que até então não estava prestando atenção em nossa colega, não teve como não ver/ouvir sua atuação e olhou para, segundo ele, ver qual era a cor da reclamante. Passados os trailers, começa o filme e nossos vizinhos decidem mudar para a ponta da fileira onde havia menos “cabelos” na frente.
O vibrato daquela mulher ficou em mim, se ela tivesse permanecido ao meu lado durante o filme e “reclamasse” de algo mais eu senti que estaria disposta a interpelá-la. O que eu falaria? Não faço ideia agora. Mas no dia ensaiei várias formas de envergonhá-la, porque de alguma maneira existe a impressão de que a vergonha pública funciona como ferramenta didática. O filme seguiu e eu fiquei com aquelas palavras, o tom da voz dela, a raiva expressa, uma raiva direcionada e de certa maneira permitida e alimentada. Fiquei quase a sessão inteira imaginando como ela devia ter reagido a algumas cenas do filme, principalmente a toda a crítica sobre a destruição material e simbólica imposta pelos colonizadores aos povos nativos (no filme vale o continente africano, mas para nós é fundamental pensar conjuntamente com os povos nativos das Américas). Ao invés de fazê-la pensar seu lugar arrisco dizer sua reação ao filme foi raiva, pura e simples. Raiva que cega e ensurdece. Ensurdece porque há pessoas, julgo como ela, que não importe o quanto você argumente evocando a história social e econômica do nosso país para comprovar que nossa estrutura social é racista e os acessos são limitados não somente por uma questão de classe. Algumas pessoas não querem e não vão ouvir.
Aquela mulher estava visivelmente incomodada pelo mesmo motivo que eu estava confortável: havia muitas pessoas como eu num mesmo recinto ao passo que ela era minoria. Ela perdeu seu referencial, o que lhe restava era se afirmar rebaixando o outro, odiando o outro que não a reflete. O mesmo referencial que embasa algumas pessoas a reclamar que o Brasil está chato porque a turma do politicamente correto pede que na novela não tenha gente preta só atrás das grades como malandro, mas também como o empresário bem sucedido e respeitado. Que a mocinha baiana, sendo a Bahia o estado brasileiro com a maior população declarada negra ou parda, seja uma atriz que seja verossímil, tenha aparência de baiana. Os “politicamente corretos” nos tiraram o direito de dizer: “Tem neguinho que…” porque dizem que esse tipo de argumento começou a ser usado no contexto da pós-abolição e começo da imigração de povos europeus e quando algum imigrante não queria aceitar uma situação de trabalho degradante recebia como resposta: “Tem negro que aceita”.
Como tudo isso que compartilhei aqui, é possível perceber que, a exemplo da minha vizinha de poltrona no cinema, não é todx brancx que aceita quando as coisas começam a mudar. O duro é quando apenas reclamar no cinema não é suficiente e é “preciso” matar o outro que o incomoda.
Marcos Vinícius presente!
Quem escreve

Wallesandra Rodrigues
Cientista Social pela Fundação Escola de Sociologia e Política de São Paulo - FESPSP, mestranda na área de Ciências Humanas e Sociais na Universidade Federal do ABC - UFABC, desenvolve pesquisa com enfoque na situação de mulheres negras encarceradas em São Paulo. Integrante do Coletivo 21 de Novembro - 21N de alun@s negr@as da FESPSP. Membra do Grupo de Estudos Resistência (UFABC). Uma mato-grossense de "tchapa" (nascimento) que já foi bem nômade nessa vida. Por enquanto aqui.