“Todo corpo que tem um deserto
Tem um olho de água por perto
Para escutar, basta abrir os poros,
Para aceitar, basta oferecer¹”
Nas últimas semanas um tema perpassou de forma persistente minha prática clínica e docente: a necessidade de criar espaços, tanto dentro de si, quanto no ambiente cotidiano. Essa temática emergente parece apontar para uma necessidade presente em um campo bem mais abrangente que a sala de aula ou o consultório. Passamos por tempos muito difíceis nos últimos meses, de uma disputa eleitoral acirrada e polarizada. E vivemos sob a sombra da iminência, num futuro próximo, de retirada de direitos sociais, além de uma possível volta da perseguição política no cenário nacional. Tudo isso pesa nos corpos – pesa os corpos – que sentem urgência em abrir espaços.
Foi com estes corpos pesados, cansados e tristes que me deparei muitas vezes nas salas de aula, em especial nos dias que sucederam o primeiro e o segundo turno das eleições. E foi justamente ao me deparar com estes corpos pesados e ser, eu mesma, mais um corpo pesado no espaço, que pude presenciar a potência de mudança de atmosfera que um processo de atenção ao corpo pode trazer. Neste semestre que passou eu ministrei uma aula prática de eutonia que acontecia às segundas-feiras e, assim, algumas aulas coincidiram com os dias subsequentes aos domingos em que fomos às urnas. Para estes dias, pensando no fato de que eixo e centramento me pareciam atitudes fundamentais para lidar com nosso contexto político e enfrentar as forças que estavam entristecendo e amortecendo nossos corpos, resolvi propor um trabalho de atenção à coluna, pensando nesta como eixo central de sustentação do nosso corpo. Foi impressionante como o trabalho de atenção a si, aos ossos e à pele modificou uma atmosfera que estava densa, trazendo energia, leveza e vivacidade aos nossos espaços internos e externos. Uma mudança de ambiente nítida, percebida até por quem estava em uma postura de observação e não estava participando ativamente da aula.
Na conversa ao final da prática uma das alunas disse que sentia que a prática da eutonia lhe permitia abrir espaço dentro de si. Conversamos sobre como essa abertura é necessária para que seja possível ter uma postura de escuta do outro.
Para escutar o outro é preciso um corpo com espaço, poros abertos.
A partir desta constatação, conversamos sobre como o corpo fascista é um corpo enrijecido, sem escuta. Pois um dos fatores que caracteriza o fascismo enquanto tal é a ausência absoluta de diálogo. Me parece fundamental que possamos nos debruçar sobre o fato de vivermos um contexto que favorece esse estado de surdez nos corpos. Nosso mundo atual tem favorecido a produção de corpos fechados, enrijecidos, violentos, que, ao invés de se abrir para as diferenças que se apresentam na existência, tem ímpetos de eliminá-las. São corpos que se recusam a compreender a complexidade da existência, que querem promessas de soluções fáceis e prontas, mesmo que estas não tenham qualquer fundamento na vida concreta e real. São corpos que tentam amortecer a vida germinativa que teima em florescer pelos poros, que querem se manter idênticos a si mesmos, inertes. Temem o abismo que representa a contínua transformação da vida e se fecham em si mesmos, tornando-se insensíveis à incessante alteridade do mundo.
Apontamos o fascismo nos outros, mas ele está presente no campo em que estamos imersos, como uma força. Todos podemos ser capturados por este ímpeto ao fechamento e à dessensibilização, principalmente quando o contexto está muito adverso. Por isso mesmo, me parece que um dos principais antídotos ao fascismo é a escuta. E para escutar é preciso de espaços abertos no corpo.
Habitar caixa torácica
coluna
ossos da pelve
pés.
Nesse sentido tenho vislumbrado grande potência política no trabalho de atenção ao corpo. Habitar os espaços do corpo cria espaços políticos de existência e de resistência. Cria novas possibilidades de conexões entre os corpos. Nos conecta com as forças corporais de expansão e comunicação, em oposição às forças de silenciamento e opressão que têm proliferado em nosso cotidiano.
E, por fim, estes corpos vivos e vibrantes poetizam os espaços. Trazem potências de criação e encantamento, tão necessárias e urgentes nos dias de hoje.
Notas de Rodapé
¹Trecho da música “A Primeira Pedra”, de composição de Marisa Monte, Arnaldo Antunes e Antonio Carlos Santos de Freitas, que serviu de inspiração para que eu e meus sócios – Rafael Lins e Thatiana Caputo – batizássemos nosso espaço terapêutico de “Casa Olho D´Água Terapias Integradas”. Dentre outras coisas, achamos bonita a ideia de um espaço de descanso e acolhimento em meio ao deserto. Segue o link, para quem quiser ouvir: https://www.youtube.com/watch?v=DwyfgxTvPWI
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Quem escreve

Alice Vignoli Reis
é psicóloga pela USP, mestre em psicologia pela UFRJ e doutoranda em psicologia nesta mesma universidade. Possui formação profissional em Eutonia pelo Núcleo Berta Vischinivetz. Pesquisadora associada ao NEIFECS – Núcleo de Estudos em Fenomenologia e Clínica de Situações Contemporâneas. Desde a graduação tem se sentido intrigada com a questão da superação da cisão mente/corpo e busca aprofundar-se nela. Atualmente dá aulas como professora substituta no curso de graduação em psicologia da UFRJ e descobriu na docência uma paixão bandida, daquelas que dão muito prazer e muito trabalho. Atua também como psicóloga clínica, no Rio de Janeiro, a partir de uma perspectiva que entende o sujeito como corpo situado no mundo. alice.v.reis@gmail.com.
Teresa Vignoli
jan 29, 2019 at 18:58
Fundamental sua experiência e sua reflexão sobre o corpo que precisamos reavivar em nós para sermos escuta para a voz e o corpo do outro!