Nas semanas que passaram não consegui fazer um punhado de coisas que me propus. Incluindo enviar um texto para essa coluna. Não devo ser a única lidando com essas faltas cotidianas, mas sou a única que sabe qual é o efeito de cada falta em mim. A única que sabe como será o esforço de olhar para tantas outras coisas que consegui concluir ou começar. Pode ser clichê parafrasear Caetano, mas cada sujeito tem o potencial de saber “a dor e a delícia de ser o que é”. Digo potencial, pois nem sempre se sabe quem é, e esse exercício precisa de um espaço que muitas vezes não se tem, ou não se sabe como ter. Para mim esse espaço foi desenhado em terapia, para outras pessoas em expressões como escrita, canto, dança etc.
Iniciei assim, pois resolvi escrever um “novo” texto quando consegui compreender que em meus processos, algumas coisas deixam de fazer sentido e voltam a fazer sentido apenas com a força daquilo que me afeta. Dessa forma, uma reflexão foi provocada em um evento realizado pelo núcleo de relações étnico-raciais do CRP-SP em julho deste ano. Na ocasião fui prestigiar amigos que contribuíram com um capítulo de um livro que compunha a campanha Todo Racismo é uma Forma de Violência lançada pela mesma organização.
A abertura do evento contou com falas de pessoas envolvidas na organização compartilhando os percursos do trabalho, agradecimentos às parcerias e familiares. Tudo estava tranquilo! Até anunciarem uma intervenção artística. Aguardei despretensiosamente com um simples: “Massa!”.
Um grupo de jovens atrizes e atores aceitaram o desafio de encenar uma coreografia. Entram usando sobretudos, shorts e tops pretos. Um dos atores cantava uma versão de Cálice de Chico Buarque que denunciava o genocídio da população jovem negra enquanto ele mesmo carregava um corpo. Seguido pelos outros atores, com expressões de dor e confusão, continuavam cantando à capela até chegarem à marca do palco. E isso era só a abertura! Depois o que se seguiu foi um ballet de corpos negros ao som de Iodo de Luedji Luna. A beleza dos corpos em movimento traduzia a dor do racismo. Seja no cair do corpo que levava um tiro de um policial ou o corpo que se lançava por uma ponte. O pretenso fim e continuum da dor é a morte.
A consciência da estrutura racista da sociedade brasileira não “é pra todes”. Não é para todes no sentido que se faz necessário suporte para lidar com as dores que virão junto com essa consciência.
Penso que razão e emoção, em relação a isso, podem realmente andar separados. E não é a toa que gosto de refletir com aquilo que me emociona.
O Brasil foi o último país a abolir a escravidão e a sociedade em geral não pensa com rigor qual são as heranças reais (não a baboseira de que somos todos brasileiros) de mais de 300 anos de escravidão. Mais de 300 anos em que se buscou violentamente destituir os sujeitos de suas subjetividades e humanidade. Africanos escravizados foram sujeitos sequestrados de seus lares para serem transformados em produtos, mercadorias, escravos.
As possibilidades de agência e resistência estão sendo reveladas ao poucos. Ainda predomina a dor ancestral. A raiva ancestral. A resistência ancestral. A ferida ancestral. Descobriu-se que muitos africanos sequestrados não chegaram ao destino, pois conseguiram, em um último ato, resistir à indignidade humana da escravização. Pularam! Não de uma ponte, dos navios negreiros. Suicídio. Dizemos hoje. Suicídio. Envergonham-se alguns, empatizam-se outros.
Alguém na platéia levantou a seguinte questão: Por que não olhar para o suicídio de pessoas negras, hoje em dia, como uma extensão do projeto genocida? Eu penso que sim, e acrescentaria a pergunta: Valeria para todos os marcadores sociais? Sou compelida a afirmar categoricamente que sim, novamente.
Quando um Estado não tem pudor em mostrar quem se faz morrer e quem quer deixar viver, a mensagem é compreendida abertaMENTE. Todes Aqueles cujos alvos se encontram em suas testas sentem que é uma questão de tempo. A ansiedade pela chicotada que virá é sentida de maneira muito específica por cada sujeito. A mensagem de quais vidas importam menos é explícita. Falar o que sente e o que vê às vezes não é uma opção para não correr o risco de ser acusado de “vitimismo” ou até mesmo para ser “aceito”. Mas até quando se consegue seguir assim. Para uns é mais difícil que para outros.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
MBEMBE, Achilles. Necropolítica. Artes & Ensaios. Revista do PPGAV/EBA/UFRJ. Rio de Janeiro, 2016.
KILOMBRA, Grada. A Máscara. In: Memórias da Plantação: Episódios de racismo cotidiano. Trad. Jess Oliveira. Ed. Cobogó. Rio de Janeiro, 2019.
Quem escreve

Wallesandra Rodrigues
Cientista Social pela Fundação Escola de Sociologia e Política de São Paulo - FESPSP, mestranda na área de Ciências Humanas e Sociais na Universidade Federal do ABC - UFABC, desenvolve pesquisa com enfoque na situação de mulheres negras encarceradas em São Paulo. Integrante do Coletivo 21 de Novembro - 21N de alun@s negr@as da FESPSP. Membra do Grupo de Estudos Resistência (UFABC). Uma mato-grossense de "tchapa" (nascimento) que já foi bem nômade nessa vida. Por enquanto aqui.