“Mas que nega linda
E de olho verde ainda
Olho de veneno e açúcar!
Vem nega, vem ser minha desculpa
Vem que aqui dentro ainda te cabe
Vem ser meu álibi, minha bela conduta
Vem, nega exportação, vem meu pão de açúcar!
[Monto casa procê mas ninguém pode saber, entendeu meu dendê?] (…)
Mulata Tipo Exportação – Elisa Lucinda
Estamos tão acostumadxs com determinadas expressões que não uma
ou duas vezes, eu mesma já me engasguei com alguma saindo da minha
boca. A verdade é que essas expressões já estão tão naturalizadas em nosso imaginário e vocabulário que temos dificuldade de pensar um termo
equivalente ao que queremos manifestar, assim, de bate-pronto, tão logo o
pensamento ocorre.

Em outro texto comentei sobre uma das conversas que já surgiram com
amigxs em mesas de bar (não só, mas que saudade!) em que tratamos de pensar as expressões racistas que não problematizamos no dia-a-dia e eis que esses dias problematizei algumas que já não uso há muito tempo: “Chuta que é macumba!” e “Me respeite, que não sou suas nêga”.
Sempre que possível penso que seja bom repetir que sujeitxs que fazem
parte de grupos discriminados e inferiorizados também estão passíveis de reproduzir a mesma discriminação contra seu grupo. Isso é possível pelo
processo de apagamento de sua história, origem e importância enquanto
grupo. Um apagamento imposto pelo grupo que se julga universal e que torna possível a destituição da humanidade do Outro. Todxs queremos ser
reconhecidos como humanxs dignos de respeito e afeto, assim o movimento
natural é tentar se distanciar daquele que não condiz com o padrão que
representa a dignidade, mesmo que se carregue inegavelmente na pele as
características do “indigno”.
Grandes parênteses à parte, voltemos à problematização das expressões. Como a grande maioria das mulheres da minha idade, o processo de “descobrir-se” negra se deu na vida adulta, com algumas passagens em comum e como principal e primeiro deles, o processo de aceitação do cabelo natural. Ofensas gratuitas disfarçadas de piadas se deram aos montes, pois as pessoas se sentiam (e ainda sentem) no direito de devolver a “ofensa” que era uma mulher usar um cabelo que deflagrava sua “rebeldia” ao padrão de beleza instituído.
– Como assim, ela usa esse cabelo que não é bonito e ninguém fala nada? Ela não pode se sentir bem com isso.
Não era possível que se desconhecesse o padrão de beleza almejado. Ele estava por todas as partes. Qual criança que cresceu nos anos 80/90 nunca quis ser a Xuxa ou uma de suas paquitas? A Angélica e suas angelicats? Com seus longos cabelos loiros e olhos azuis, muitas crianças que não condiziam com esse padrão odiavam seus cabelos, olhos e a si mesmas.
Logo, imagino contestarem: Não eram só as crianças negras que queriam ser como elas. Vão dizer também: Tivemos a Mara Maravilha! Claro, que não foram só crianças negras que quiseram ser como Xuxa e Angélica, mas de longe são as que estavam mais distantes daquele padrão. E sobre a Mara, penso que ela apareceu como a representante da brasilidade amazônica para equilibrar os padrões, igualmente erotizada como a Xuxa do início de carreira, o que torna possível uma tentativa de pôr fim, hoje em dia, a qualquer possível acusação de colonização dos padrões de beleza por meio da televisão. Mas quem dera a colonização fosse só dos padrões de beleza e na representatividade quantitativa da TV.
A colonização do pensamento se deu para além da beleza, um exemplo é que não somente entre meus amigxs e eu, mas era (ainda é para alguns grupos) bem comum, usar uma expressão quando se queria desqualificar alguém seja pela sua aparência ou por “caráter”. Dizer “chuta que é macumba!” era o ápice da ofensa dirigida a alguém a quem se julgava indigno ou repugnante. Qual era o pano de fundo para que essa expressão pegasse? A desde sempre intolerância, criminalização, demonização e ignorância sobre os cultos de matrizes africanas. Resquícios dos apagamentos que tratei no texto anterior, de nossa imposta tradição cristã, bem como de repressões policiais com devido apoio institucional legal, à exemplo, do Código Penal de 1890 (dois anos após a abolição oficial da escravatura) e de 1940(1).
Não lembro quando parei de usar essa expressão, mas sei que foi a partir do momento, já adulta, que tive contato com as religiões de matrizes africanas e amigxs que seguem seus preceitos. Isso, porque ainda há uma névoa na relação da minha família paterna com os povos de terreiro.
Agora a outra expressão que já usei muito, sem me dar conta de que eu
era a representação da figura indigna em questão: “a nêga”. Quando se fala: “Me respeite, que não sou suas nêga” o que está bem explícito é que há um perfil de mulher com quem é aceitável ser desrespeitosx e não levar a sério, e ao relacionar-se, manter no sigilo. No imaginário ficou-se inculcado que em se tratando de mulher a “branca é para casar, a mulata para f…. e a negra para trabalhar” conforme os ditos populares realçados por Gilberto Freyre em Casa Grande & Senzala.
Muitas vozes e mentes brilhantes já falaram sobre a solidão da mulher
negra(2) , portanto não vou lançar essa discussão, apenas quero pontuar que essa expressão é um braço do desrespeito naturalizado e da sexualização das “nêga”.
Eu já fui a “nêga” para alguns. Mas apenas de poucos eu tomei
conhecimento da maneira mais dolorosa: me deparando com uma foto da Xuxa ou Angélica como a oficial. E em que momento eles aconteceram como casal e a Xuxa entrou no jogo se eu, aparentemente, estava jogando como titular?
É claro que vão surgir reflexões sobre como muitas mulheres, mesmo
não sendo negras, já passaram pela situação de não saberem que estavam
sendo passadas para trás numa relação monogâmica, mas ser a “nêga” de
alguém sendo negra é específico, marcante e foi institucionalizado nessa
sociedade por séculos. Por isso não me permito nunca mais usar essa
expressão e nem deixar passar incólume quando a usam perto de mim.
NOTAS DE RODAPÉ
(1) Para uma discussão mais qualificada acerca dos desdobramentos legais da perseguição à cultos de matrizes africanas Ver. PERSEGUIÇÃO AOS CULTOS DE ORIGEM AFRICANA NO BRASIL: O Direito e o Sistema de Justiça como agentes da (in)tolerância de Ilzver de Matos Oliveira.
(2) Essa discussão é melhor aprofundada na tese de Ana Claudia Lemos Pacheco – Doutora em Ciências Sociais (2008).
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
OLIVEIRA, Ilzver de Matos. PERSEGUIÇÃO AOS CULTOS DE ORIGEM
AFRICANA NO BRASIL: O Direito e o Sistema de Justiça como agentes da
(in)tolerância. Disponível em:
http://www.publicadireito.com.br/artigos/?cod=13d83d3841ae1b92. Último
acesso em: 30/06/2019.
PACHECO, Ana Claudia Lemos. “BRANCA PARA CASAR, MULATA PARA
F…., NEGRA PARA TRABALHAR”: Escolhas afetivas e significados de solidão
entre mulheres negras em Salvador, Bahia. Tese (doutorado) – Instituto de
Filosofia e Ciências Humanas. Universidade Estadual de Campinas –
UNICAMP. Campinas – SP, 2008.
Quem escreve

Wallesandra Rodrigues
Cientista Social pela Fundação Escola de Sociologia e Política de São Paulo - FESPSP, mestranda na área de Ciências Humanas e Sociais na Universidade Federal do ABC - UFABC, desenvolve pesquisa com enfoque na situação de mulheres negras encarceradas em São Paulo. Integrante do Coletivo 21 de Novembro - 21N de alun@s negr@as da FESPSP. Membra do Grupo de Estudos Resistência (UFABC). Uma mato-grossense de "tchapa" (nascimento) que já foi bem nômade nessa vida. Por enquanto aqui.