Em uma semana em que mais uma vez uma declaração do presidente Jair Bolsonaro reviveu nos noticiários – e na alma de muitos cidadãos – os horrores da violência perpetrada pelo Estado brasileiro durante a ditadura civil-militar, provavelmente o tema da violência de Estado se fez, ou se fará presente, também nos consultórios psis. Para além dos comentários despretensiosos sobre o contexto político compartilhado entre paciente e terapeuta, será uma a oportunidade de perceber, no setting privilegiado da clínica, os efeitos de um trauma coletivo que, como sociedade, temos repetido sintomaticamente ao longo de nossa história.
Em 2018, último ano de que se têm registros, 6.160 pessoas foram mortas por policiais, um recorde que vem sendo batido ano após ano (VELASCO; REIS, 2019) (1). Desde 2013, quando já eram 2.212 (FÓRUM BRASILEIRO DE SEGURANÇA PÚBLICA, 2018, p. 26) (2), o número de mortes decorrentes de intervenção policial cresceu, ininterruptamente, 178,48%. Apesar disso, o presidente da república está longe de estar sozinho em seu desprezo pelas vidas tiradas pelo Estado brasileiro. No Congresso Nacional, a “bancada da bala”, grupo de políticos suprapartidário reconhecido, entre outras pautas, por defender a letalidade policial como método efetivo de segurança pública, mas que não possuía representação no Senado, elegeu, em 2018, 18 senadores (REBELLO, 2018) (3). Na Câmara, o número de deputados passou de 36 para 102 (CARVALHO 2018) (4). O governador do Rio de Janeiro, Wilson Witzel, desconhecido no início das últimas eleições, ganhou destaque nacional com sua propalada autorização para que policiais pudessem “abater” pessoas que estivessem portando um fuzil (FRANCO, 2018). Baseou sua campanha vitoriosa com promessas de ampliação dessa violência e as vem cumprindo: 434 pessoas foram mortas em ações das forças de segurança, entre janeiro e março, no Rio de Janeiro (SABÓIA, 2019) (5).

A despeito dos inúmeros diagnósticos e recomendações feitos por organismos internacionais acerca do tema (Human Rights Watch em 1997 e 2009, ONU em 2001, 2007, 2010 e 2016, Anistia Internacional em 2005, 2007, 2015 e 2016, Comissão Interamericana de Direitos Humanos 2011, 2017) (6), a violência de Estado, não apenas em seus defensores mais fervorosos, está inscrita e normalizada como parte da narrativa sobre o que é viver no Brasil. A discussão sobre os aspectos psíquicos que a sustentam, no entanto, são normalmente negligenciados do debate e constituem material precioso para o trabalho clínico. O recorte que passarei a destacar independe do próprio analista, eventualmente, ser simpático ao presidente da república, alinhar-se a uma ideologia conservadora ou ter simpatia por uma política de Segurança Pública de viés mais autoritário. Ele tem como centro a ética e a cura analítica que podem (e defendo que devem) ser aplicadas também à expressão, e para a elaboração, de traumas coletivos – diante de sua emergência no setting clínico.
A prática clínica realizada no âmbito dos consultórios particulares, seu enquadre liberal de prestação de serviços, bem como sua tradição de associação às ciências médicas, tendem a afastar do campo de percepção do terapeuta os componentes sociais, coletivos e compartilhados dos sintomas com os quais lida diariamente. Nesse contexto, a histórica e arraigada cultura de violência do Estado brasileiro contra seus cidadãos só tem a atenção do analista quando, ao acaso ou por engajamento político, este tem diante de si uma vítima, direta ou indireta, dessa violência. A relação da prática clínica como ferramenta de enfrentamento da violência de Estado, no que se refere ao amparo às vítimas, possui práticas consolidadas – entre as quais se destaca o Projeto Clínicas do Testemunho (https://www.justica.gov.br/seus-direitos/anistia/clinicas-do-testemunho-1) – e não são propriamente o alvo desse ensaio. Nossa questão é: e para os demais casos? Se o paciente não sofreu e não tem, ou desconhece ter, qualquer relação com uma vítima da violência estatal? Existe algo a ser feito? Vejamos.
A ditadura civil-militar brasileira, e seu modus-operandi, foi paradigmática no campo da produção de subjetividades. O aparato repressivo durante o regime de exceção tornou a violência não apenas legal, mas moralmente legítima aos olhos da sociedade. Acerca dessas práticas, Cecília Coimbra(7) (2002, p.29-30) destaca como a repressão era acompanhada de uma propaganda permanente e bem elaborada do Estado e de seu “milagre econômico”. Tais processos de subjetivação traduziam-se na importância dada ao consumismo e à ascensão social, produzindo uma aceitação passiva e quase unânime das regras do sistema: política é assunto de governo e ao cidadão cabe o estudo, o trabalho e, se for merecedor, o consumo. Essa divisão de papéis entre governo e sociedade aprofunda-se na medida em que a ascensão social pela via do consumo é ilimitada e renovada cotidianamente na competição liberal-capitalista pós-ditadura. Com o reconhecimento individual parametrizado pelo poder de consumo, cada vez menos se pode perder tempo com assuntos políticos, até o ponto em que a política seja reduzida às cobranças de poder consumir (bom funcionamento da economia) e de ter os bens protegidos (segurança privada).
A fala do presidente da República ressoa um modelo de gestão da vida no qual as garantias constitucionais asseguradas pelo regime democrático não foram (ainda) capazes de fazer frente aos inculcados desejos de autoritarismo dos cidadãos consumidores. A profunda cisão entre vida política e vida privada, antes da polarização hoje experimentada pela sociedade brasileira, é a dicotomia fundamental que normaliza o assassinato e o coloca à disposição do Estado e, o que é mais perigoso, de seus agentes. Como observa Samira Bueno (2018, p. 124) (8) em sua pesquisa com policiais homicidas, “para quem já está habituado com a morte no ambiente profissional matar pode ser apenas uma forma de resolução de um conflito doméstico ou de ganhar um dinheiro extra”.
Existe ainda um componente traumático, no sentido psicanalítico do termo, na relação do indivíduo com a violência perpetrada pelo Estado no Brasil, que nos faz negligenciar a linha tênue que existe entre a corrupção policial, que repulsa a todos, e a violência policial, na qual muitos depositam a esperança de dias mais seguros. É importante frisar que o que caracteriza o traumático não é a violência do golpe, do agente do trauma, mas sim, em um tempo posterior, a impossibilidade desse golpe ser inscrito, ser representado. Em outros termos, trata-se da falência dos recursos defensivos do Eu em processar a agressão. Nesse sentido, como destaca o psicanalista Paulo Endo em sua obra sobre a violência urbana (2005, p. 136-8) (9), para além do excesso de violência, a surpresa é um fator preponderante para a instalação de uma neurose traumática: ”a surpresa, a impossibilidade de preparação anímica frente ao perigo e às mudanças bruscas daí decorrentes definem de antemão um enorme obstáculo ao trabalho psíquico”. Um dos aspectos que configura a violência cometida por agentes de segurança pública como violência traumática, é a expectativa de que se tratam de agentes encarregados de nossa proteção. É a surpresa da violência. Não é possível desvencilhá-los desse papel, como é possível fazê-lo com os “bandidos”. Não acreditar na boa fé do agente de segurança pública seria abdicar de algo fundamental do contrato social, no qual abdica-se do uso da força física e da luta de todos contra todos, sob a perspectiva de que a violência, desde então e por meio desses agentes, somente será utilizada, se necessário, para a própria preservação do laço social. A inscrição traumática dessa violência na cultura manifesta-se como denegação do caráter violento do ato. E em, sua forma mais extrema, como apoio alienado a formas de gestão da vida que autorizam o assassinato arbitrário.
O fracasso das defesas egóicas em proteger-nos da exposição à agressão condena suas vítimas, no caso a sociedade brasileira, a um empobrecimento da experiência: incapazes de rechaçar a violência, os sujeitos passam ora a negá-la, ora a defendê-la, e sempre a repeti-la, numa tentativa infindável e fracassada de convencer aos outros e a si mesmo sobre a benevolência do Estado tirano. A dissociação entre os danos, causados pela violência de Estado em nossas formas de socialização, e sua representação, que poderia advir por meio de políticas mais efetivas de memória e reparação, nos impele, coletivamente, a permanecer nesse ciclo ininterrupto de violência, que tem em seu sintoma mais evidente a organização das milícias.
Sob a égide de uma ética e na perspectiva de uma cura analítica, deveriam ser também os traumas coletivos, a que cada sujeito está submetido de maneira singular, alvos da intervenção psicanalítica. Falas ou associações que, porventura, venham a sustentar o homicídio como ferramenta legítima e seletiva do Estado deveriam, e devem, estar submetidas ao crivo da escuta e da interpretação na clínica. Não se trata de opinião política, mas de sintoma. Existe outro modo de fazer a clínica, para além da nobre prestação de serviços em prol da saúde dos indivíduos que nos procuram. Resta saber quantos desejarão e conseguirão percorrer esse caminho.
NOTAS DE RODAPÉ
(1) VELASCO, C., REIS, T. Com mortes pela polícia, queda de assassinatos no Brasil em 2018 é menor. G1, São Paulo, 7 de mai. De 2019. Disponível em https://g1.globo.com/monitor-da-violencia/noticia/2019/05/07/com-mortes-pela-policia-queda-de-assassinatos-no-brasil-em-2018-e-menor.ghtml.
(2) FÓRUM BRASILEIRO DE SEGURANÇA PÚBLICA. Anuário brasileiro de segurança pública 2018. São Paulo, 2018
(3) REBELLO, A. ‘Bancada da bala’, antes sem senadores, agora conquista 18 vagas para 2019. UOL, São Paulo, 9 de out. de 2018. Disponível em https://noticias.uol.com.br/politica/eleicoes/2018/noticias/2018/10/09/eleicoes-2018-bancada-da-bala-senado-major-olimpio-bolsonaro.htm
(4) CARVALHO, A. L. de Bancada da bala deverá ser três vezes maior no Congresso a partir de 2019. Congresso em Foco, Brasília, 16 de nov. de 2018. Disponível em https://congressoemfoco.uol.com.br/especial/noticias/bancada-da-bala-quase-triplica-em-2019-aponta-levantamento/.
(5) SABÓIA, G. Witzel é denunciado à ONU por recorde de mortes em ações policiais no Rio. UOL, Rio de Janeiro, 7 de mai. de 2019. Disponível em https://noticias.uol.com.br/cotidiano/ultimas-noticias/2019/05/07/witzel-e-denunciado-a-onu-por-acoes-policiais-com-mortes-no-rio-de-janeiro.htm.
(6) HUMAN RIGHTS WATCH. Police Brutality in Urban Brazil, 1997. HUMAN RIGHTS WATCH. Lethal Force: Police Violence and Public Security in Rio de Janeiro and São Paulo, 2009. ONU. Relatório sobre a Tortura no Brasil. Relatório do Relator Especial sobre a Tortura da Comissão de Direitos Humanos da Organização das Nações Unidas, Nigel Rodley, 2001. ONU. Promoção e proteção de todos os direitos humanos, civis, civis, políticos, econômicos, sociais e culturais incluindo o direito ao desenvolvimento. Relatório do Relator Especial de execuções extrajudiciais, sumárias ou arbitrárias, Philip Alston, 2007. ONU. Report of the Special Rapporteur on extrajudicial, summary or arbitrary executions. Philip Alston, 2010. ONU. Report of the Special Rapporteur on torture and other cruel, inhuman or degrading treatment or punishment on his mission to Brazil. Juan E. Méndez, 2016. ANISTIA INTERNACIONAL. Brasil: “Eles entram atirando”: Policiamento de comunidades socialmente excluídas. 2005. Disponível em: https://www.amnesty.org/download/Documents/80000/amr190252005pt.pdf. ANISTIA INTERNACIONAL. Brasil: “Entre o ônibus em chamas e o caveirão”: em busca da segurança cidadã. 2007. Disponível em: https://www.amnesty.org/download/Documents/60000/amr190102007pt.pdf. ANISTIA INTERNACIONAL. Você matou meu filho!: homicídios cometidos pela polícia militar na cidade do Rio de Janeiro. Rio de Janeiro: Anistia Internacional, 2015. ANISTIA INTERNACIONAL. Anistia Internacional Informe 2015/2016: o estado dos Direitos Humanos no mundo. 2016. Disponível em: https://anistia.org.br/wp-content/uploads/2016/02/Informe2016_Final_Web-1.pdf. ANISTIA INTERNACIONAL. Anistia Internacional Informe 2017/2018: o estado dos Direitos Humanos no mundo. 2018. Disponível em: https://anistia.org.br/wp-content/uploads/2018/02/informe2017-18-online1.pdf. CORTE INTERAMERICANA DE DIREITOS HUMANOS. Relatório No. 141/111 Mérito casos 11.566 e 11.694 Cosme Rosa Genoveva, Evandro de Oliveira e outros (Favela Nova Brasília). 2011. CORTE INTERAMERICANA DE DIREITOS HUMANOS. Caso Favela nova Brasília vs. Brasil Sentença de 16 de fevereiro de 2017. 2017. Disponível em http://www.itamaraty.gov.br/images/Banco_de_imagens/SENTENCIA_FAVELA_NOVA_PORTUGUESfinal.pdf.
(7) COIMBRA, C. M. B. Doutrina de Segurança Nacional e produção de subjetividade. In: RAUTER, C., PASSOS, E., BARROS, R. B. (Org.). Clínica e Política: subjetividade e violação dos direitos humanos. Rio de Janeiro: Instituto Franco Basaglia Editora Te Corá, 2002. p. 25-38.
(8) NUNES, S. B. Trabalho sujo ou missão de vida?: persistência, reprodução e legitimidade da ação da PMESP. 2018. Tese (Doutorado em Administração Pública e Governo) – Escola de Administração de Empresa, Fundação Getúlio Vargas, São Paulo. 2018.
(9) ENDO, P. C. A violência no coração da cidade: um estudo psicanalítico. São Paulo: Escuta, 2005.
Quem escreve

Paulo Kohara
Doutor em psicologia pela USP, com estágio doutoral na Université Sorbonne Paris-Cité - Université Paris XIII. Psicólogo na Defensoria Pública do Estado de São Paulo. Membro do Grupo de Pesquisa em Direitos Humanos, Democracia, Política e Memória do Instituto de Estudos Avançados (IEA-USP).
Helio
ago 13, 2019 at 00:40
O texto faz aflorar a situação em que vive a cabeça do brasileiro. A questão da violência do Estado hoje se tornou mais perceptível aos olhos das novas gerações. Porém ela sempre existiu e por inércia ficou naturalizada dentro das pessoas, como perfeitamente normais. As pessoas não param para debater assuntos simples, como por exemplo o porque da rodovia dos bandeirantes ter recebido esse nome ??? Mas quem foram os bandeirantes ?? Quem foi Fernão Dias ??? Quem foi o Anhanguera ?? Quem foi Borba Gato ( aquele da estátua horrorosa em Sto Amaro ??? Todos eles, segundo os livros escolares foram desbravadores do sertão brasileiro, fazendo as nossas fronteiras terem dimensões continentais. Pura mentira, todo esse discurso foi para encobrir o genocídio praticado por esses “desbravadores” portugueses contra uma população indígena indefesa. E para coroar tal violência, a Rodovia dos Bandeirantes corta justamente uma aldeia indígena perto do Pico do Jaraguá, e o Palácio do governo de São Paulo se chama Palácio dos Bandeirantes.!!!! Lembrando também que aqui em SP, temos avenidas, ruas, viadutos que homenageiam torturadores e homicidas que tiveram cartão verde do Estado brasileiro para matar. Percebe que introjetaram na nossa psqui a normalidade da violência ??O Estado é seu principal executor, mas isso é desconstruído através do discurso das elites que dominam esse país. Percebe que só em países como o Brasil existe uma policia Militar ??? É feita exatamente para reprimir a base da pirâmide e matar grupos específicos que são sempre os mesmos: pobre, preto e contestadores. Eles continuam fazendo esse “serviço” ao longo de séculos e tudo fica naturalizado dentro de nós como ” fizeram o que tinham que fazer”. Um presidente da republica que desconstrói ganhos civilizatórios em todas as áreas, é aplaudido por um contingente representativo da nossa sociedade. Por essas e por muitas outras ações do Estado brasileiro estamos regredindo em todas as áreas, não somente na área civilizatória . O Estado não opera sozinho, ele opera a mando de uma parcela da sociedade que que locupleta da miséria de milhões de pessoas. Enquanto essa parcela da sociedade, que alguns chamam de elite do atraso, não se convencer que estamos no século 21, ela vai operar da mesma forma cruel que vem operando desde os bandeirantes em parceria com o Estado. Quem está precisando ir para o divã é a nossa elite do atraso. Beijos.
DEPOIS TEM FEMINICÍDIO E NÓS SOMOS CULPADOS - Sobre a escuta da masculinidade como violência | Paulo Kohara - Coluna | Desha
set 30, 2019 at 12:04
[…] Este ensaio, no entanto, visa abordar um aspecto específico que, tal como em nossa coluna anterior, visa chamar atenção das/os terapeutas para os componentes sociais, coletivos e compartilhados […]