Com sua lucidez característica, Paulo Kohara, na última Coluna Desha de 2019, analisa a gênese sócio-política das mortes ocorridas no início do mês em Paraisópolis, além de suas possíveis consequências, com 38 policiais militares afastados, que, se comparados a anjos caídos, podem não ser exatamente um sinal de esperança na luta contra a violência policial, num país em que a brutalidade institucionalizada se fundamenta na crença do conflito mítico entre o Bem e o Mal.
Primeiro de dezembro de 2019, Paraisópolis. Nove jovens, entre 14 e 23 anos juntam-se às outras, pelo menos, 2886 pessoas mortas em decorrência de intervenção policial realizadas somente neste ano(1) (VELASCO; GRANDIN; REIS, 2019)(2). Mas dessa vez foi diferente. Não em razão da cor da pele das vítimas. Não em razão de sua classe social ou do local onde foram mortos. Nem mesmo em razão de sua faixa etária. Dessa vez foi diferente porque, mesmo mortos, esses jovens foram capazes de testemunhar uma violência que resiste ao apagamento, que resiste a normalidade, e que exige ser ouvida. Ocupou noticiários, manchetes, telejornais e a agenda do governador do estado. Foi o bastante para romper o silêncio, para mobilizar instituições, para afastar 38 policiais militares das ruas – o que é muito. Mas ainda não o bastante para descontruir a mitologia que sustenta a violência policial brasileira.
Primeiro entendamos o que há de singular nessas mortes e o que é notável elas sejam capazes de testemunhar. Os casos de mortes em decorrência de intervenção policial possuem, invariavelmente, uma narrativa sobre os fatos que é documentada na forma de um registro de ocorrência policial, na qual a(s) morte(s) são noticiadas ao Estado pelos policiais que a causaram. Por serem informadas pelos agentes que causaram essa(s) morte(s) existe um padrão lógico dessa narrativa, na qual os agentes descrevem situações que justificam a legalidade de sua ação. Assim, o enredo padrão comumente descreve a morte de um ou mais “bandidos”, indivíduos que tendo cometido um crime, resistiram a intervenção policial e, em razão disso, acabaram mortos. Em razão dessa estrutura, a versão oficial do Estado sobre essas mortes sempre parte de uma negação do estatuto de vítima às pessoas alvejadas pela polícia. Nela a morte é coadjuvante: há um crime (não o de homicídio, mas recorrentemente algo patrimonial), a justa e efetiva intervenção policial e, então, o resultado morte, causado pela injusta conduta do criminoso. Cabe destacar que mais do que uma versão dos fatos, na grande maioria dos casos esta é a única versão sobre o que ocorreu, considerando que é rara a existência de testemunhas (que mesmo que existentes na cena do crime temem em revelar o que sabem) e que o outro personagem dessa história está morto.
Existem efeitos bastante práticos em razão desse funcionamento do sistema. Com base nessa estrutura narrativa, de acordo com dados do Núcleo Especializado de Cidadania e Direitos Humanos da Defensoria Pública de São Paulo divulgados pela imprensa, mais de 90% das mortes decorrentes de intervenção policial no estado são arquivados sem nem mesmo ir a julgamento (ALESSI, 2016)(3) índice que chega a 99,2% no Rio de Janeiro (MISSE, 2013, p. 45)(4). O principal motivo dos casos serem arquivados antes do julgamento é justamente a ausência de versão que contradiga a legalidade dessas mortes alegadas pelos policiais. Não sendo possível presumir a falsidade da declaração dos policiais sem qualquer prova ou evidência em contrário, caminho dessas ocorrências é o arquivamento. Mas em Paraisópolis foi diferente. Não que a tentativa de criminalização das vítimas não tenha sido tentada, com a criminalização de todo o baile funk e de seus integrantes, que teriam agredido os policiais que estavam na captura de criminosos. Mas não é fácil justificar nove corpos violentamente mortos em razão de múltiplas lesões e que, na melhor das hipóteses, foram pisoteados. Não há versão dos fatos que torne plausível e justificável a morte violenta de nove jovens que foram ao baile funk se divertir. Assim, nesse terreno onde a palavra é estéril para denunciar a violência a que os jovens habitantes da periferia são expostos cotidianamente, os corpos mortos de Gustavo, Denys, Gabriel, Eduardo, Bruno, Mateus, Luara, Marcos Paulo e Dennys Guilherme foram capazes de denunciar uma violência policial que insiste em ser negada. Mais do que isso, foram capazes de restituir a autoridade narrativa das vítimas que reiteradamente são silenciadas pela versão oficial dos registros de ocorrência. Não à toa, outros vídeos e registros de violência policial passaram a circular nas redes sociais e na grande imprensa, resultado de um encorajamento de vítimas e testemunhas que só foi possível após essas mortes.

No entanto, a revolução em potencial que esse episódio poderia ensejar na política de segurança pública brasileira, em especial no que se refere a violência dos agentes de Estado contra determinados segmentos da população, ainda enfrenta grandes obstáculos. Mais do que um fenômeno objetivo e racionalmente analisável, a violência policial se sustenta nas subjetividades produzidas pelo modo de socialização brasileiro, que nos divide entre aqueles que crescem temendo o encontro com a polícia os privilegiados que acreditam que ela os protegerá – ou ao menos não os atacará. No campo de análise dos reflexos subjetivos desse fenômeno, a pronta atuação do governador do estado para o afastamento dos policiais envolvidos na operação pode ser vista como positiva, considerando se tratar de figura política que apregoa o uso da violência como forma principal de combate ao crime e que sua conduta reflete um cálculo político de reprovação do eleitorado quanto a ação policial em Paraisópolis – ou seja, mesmo dentre aqueles que não é imediata a percepção de que a polícia é injustamente violenta o episódio pode ter levado a conclusão de que a polícia pode ter sido injustamente violenta nesse caso. Mas é difícil dimensionar o quanto a lógica individualista, patrimonialista e punitivista com a qual demandamos e encaramos a política de segurança pública não prevalecerá, satisfazendo-se com a eventual punição dos agentes envolvidos no caso e ignorando a necessidade de mudanças mais profundas do funcionamento dessa política. Abordemos brevemente a “mitologia” da violência policial brasileira para compreender os processos de subjetivação que ela implica e como o afastamento dos 38 policiais envolvidos nas mortes dos 9 jovens de Paraisópolis não coíbe, necessariamente, produção de subjetividades favoráveis a violência de Estado.
A violência policial brasileira sustenta-se numa percepção de que o combate ao crime trata-se de uma guerra do bem contra o mal. Fundamentalmente trata-se de uma crença compartilhada de que existem sujeitos criminosos cuja única solução cabível para o controle de sua conduta é o emprego da violência. É certo que esse processo maniqueísta de percepção do fenômeno crime não acomete apenas a população brasileira, mas maneira como operamos essa dicotomia tem suas especificidades. O crime, reificado no sujeito autor de crimes, é associado no Brasil a determinados tipos sociais (como por exemplo o “malandro”, o “marginal”, o “vagabundo”) em oposição as “pessoas de bem” (MISSE, 2014, p. 205-7)(5). Trata-se de um processo historicamente situado, na qual pobreza e criminalidade são associadas e, como destaca Cecília Coimbra (2002, p. 84)(6), produzem subjetividades que percebem segmentos como os sem-teto, sem-terra, entre outros, como perigosos e potencialmente criminosos. Assim, na guerra do bem contra o mal brasileira, a imagem do mal tem classe social, cor de pele e endereços pré-estabelecidos e em nome da manutenção/integridade/segurança da sociedade, políticas de segurança públicas que tenham como estratégia o uso da violência contra esses grupos são consideradas não somente legítimas, como são desejadas. A associação entre pobreza e criminalidade é relevante para fins políticos, pois permite que às classes dominantes conter, pelo uso da violência e com respaldo de uma legitimidade social, não somente a criminalidade, mas qualquer expressão popular que contrarie seus interesses. Cabe destacar que a polícia, apesar de ser uma instituição importantíssima dentro da organização de um Estado Democrático de Direito, é uma instituição que também serve a regimes autoritários e no Brasil coexistiu com a escravidão, com a monarquia e com dois regimes ditatoriais.
Ocorre que, apesar de nascido de um interesse de classe, quando codificado por um sistema de justiça criminal e por um sistema de valores morais da sociedade, os efeitos dessa “mitologia” independem do comando direto da classe dominante. Mesmo quando essa vinculação existe, nem sempre se trata de uma ação consciente de seu viés de favorecimento de classe, sendo subjetivamente vivida como dedicação a um interesse coletivo irrestrito – o que pode ser explicado por uma percepção subjetiva de que os “bandidos” não pertencem a essa mesma coletividade, mas, ao contrário, a maculam. Com o apagamento do viés de classe, a crença de que o crime habita determinados sujeitos e tipos sociais passa a ser compartilhado inclusive pelos grupos que compartilham o tipo social alvo dessa presunção de culpabilidade. Em pesquisa recente realizada pelo IBOPE (2018, p. 8-9)(7) verifica-se que 50% da população concorda com a afirmação “bandido bom é bandido morto”, proporção que se mantém consistente mesmo se considerados os grupos em função de raça/cor (50% daqueles que se declararam pretos ou pardos concordam com a afirmação, sendo que destes 43% concordam totalmente), renda familiar (47% dos que recebem até um salário mínimo e 50% daqueles que recebem entre 1 e 2 salários mínimos concordam com a afirmação) ou condição do município (48% dos que residem em periferias concordam com a afirmação).
O conceito de sujeição criminal, apresentado pelo sociólogo e professor da UFRJ, Michel Misse, nos auxilia a compreender esse processo de subjetivação, caracterizando-o em seis principais dimensões: 1) expectativa de que determinados indivíduos e grupos sociais tenham propensão a cometer crimes como parte inelutável de seu ser; 2) transferência do foco criminalizador do crime para seu autor, cujos atributos caberia à ciência conhecer; 3) as características associadas a esses indivíduos autores de crimes passam a ser justificadas como critérios preventivos de controle social; 4) os indivíduos e grupos sociais, colocados pela sua relação com a justiça e com a polícia nessa condição de suspeição potencial, passam a se reconhecer nesse papel, buscando justificações para sua “diferença” ou “trajetória” individual. Em caso de confirmação das suspeitas, o sujeito admite ser irrecuperável e perigoso, ou simplesmente cala-se por se tratar de uma condição que não carece de explicações. Aos seus perseguidores confirma-se ideal de que é necessário exterminá-lo; 5) não há presunção de inocência: antes de qualquer crime, desvio ou reforço identitário, constitui-se uma subjetividade tendente ao crime associado a um determinado tipo social; 6) sua condição é de normalidade e não de desvio, organizando a expectativa de que existem certos indivíduos e tipos sociais “do mal” e outros “do bem”. Reforça a desigualdade social, já que reproduz a crença de que a diferença do outro em relação a mim não pode conviver com a igualdade de direitos entre nós.
O efeito desse processo de sujeição criminal impacta também no processo de subjetivação daquele que se engaja na carreira policial. A existência de um outro criminoso e violento implica a necessidade de um Eu igualmente violento, ainda que sob justificativa de defesa. Entretanto, a especialização de funções em nossa sociedade faz com que essa tarefa seja destinada apenas a um pequeno conjunto de indivíduos. O sociólogo alemão Norbert Elias (1997, p. 165 e 402)(8) observa que mesmo em Estados onde a pacificação social tenha sido mais integralmente atingida por meio do monopólio legítimo do uso da violência, existe lugar para os “especialistas em violência”. Elias destaca as repercussões no indivíduo que ocupa o papel do “especialista em violência” frente às expectativas contraditórias que a ele se impõem. Em um contexto “civilizatório” de aversão ao uso da força física para resolução dos conflitos, pessoas são treinadas e instigadas a matar. Posteriormente lhes é exigido que só o façam em determinados contextos e momentos, contra determinadas pessoas, devendo nos demais momentos comportar-se com zelo pelo não uso da violência. O mandato policial, como destacam Jaqueline Muniz e Domício Proença Junior (2014, p.496)(9) prevê um amplo poder discricionário ao policial, que engloba a autorização para o uso da força, a avaliação de oportunidade e propriedade de seu uso e alcança a pertinência e a forma de toda e qualquer atividade policial, “uma vez que corresponde ao exercício da governança da polícia, ao exercício da tomada de decisão política na esquina (street corner politics)”. A “ação policial está sujeita à apreciação política, social ou judicial apenas a posteriori”. Em suma, isso significa que se o agente policial é selecionado, formado, treinado e instigado pelos comandos sociais a ser violento contra determinados grupos sociais é a pessoa do policial que responde pelo homicídio quando ele vier a ocorrer. Não haverá em cada caso um comando formal para que o policial seja violento ou execute outra pessoa. Na apreciação a posteriori, caso seus atos sejam validados, o policial permanecerá sendo um dos sujeitos “de bem”. Caso contrário, poderá rapidamente juntar-se aos “bandidos”. É nesse sentido que o afastamento dos policiais envolvidos nas mortes dos jovens de Paraisópolis, não necessariamente ensejará mudanças com relação a violência praticada pela polícia. Anos atrás, por ocasião da chacina de Osasco e Barueri, em que 18 pessoas foram assassinadas, o então comandante do policiamento militar na região, Ernesto Puglia Neto, afirmou em audiência pública: “Não somos compostos por bandidos, mas infelizmente tem bandidos que envergam temporariamente nossa farda”. A mitologia da violência policial brasileira, como toda mitologia, mostra-se imune ao contraditório. Quando as notáveis denúncias de sua falácia ganham a luz do dia, sua narrativa resiste pelo sacrifício de seus anjos caídos/bandidos de farda.
Não é possível prever até que ponto a percepção de que a polícia foi injustamente violenta em Paraisópolis será capaz de afetar grupos que não são alvos dessa violência para que estes percebam que a polícia é injustamente violenta o tempo todo. A perspectiva inclusive não é muito animadora. Entretanto se provavelmente a mitologia da violência policial brasileira seguirá de pé, mesmo após esse trágico mês de dezembro, é preciso reconhecer que as vidas de Gustavo, Denys, Gabriel, Eduardo, Bruno, Mateus, Luara, Marcos Paulo e Dennys Guilherme impulsionaram a sociedade para o esclarecimento, sobre juventude, sobre a expressão cultural do funk, sobre a inadequação dos protocolos policiais, sobre o quadro crônico da violência policial. E com esclarecimento, um dia, seremos capazes de abdicar dos mitos.
NOTAS DE RODAPÉ
(1) Dados referentes somente ao primeiro semestre e excluído o estado de Goiás. Além disso, cabe destacar que, formalmente, as mortes das nove vítimas de Paraisópolis não foram qualificadas, ao menos até o momento, como Mortes Decorrentes de Intervenção Policial (MDIP).
(2) VELASCO, C. GRANDIN, F. REIS, T. Mortes por policiais no Brasil sobem 4% no 1º semestre; RJ e PA têm alta, mas 15 estados registram queda. G1, São Paulo, 14 de out. de 2019. Disponível em https://g1.globo.com/monitor-da-violencia/noticia/2019/10/14/maioria-dos-estados-registra-queda-no-no-de-pessoas-mortas-pela-policia-brasil-porem-tem-alta-no-dado-no-1o-semestre.ghtml.
(3) ALESSI, G. Justiça ignora evidências para inocentar PMs matadores. El País, São Paulo, 09 de fev. de 2016. Disponível em http://brasil.elpais.com/brasil/2016/02/03/politica/1454506442_494958.html.
(4) MISSE et al. Quando a polícia mata: homicídios por “autos de resistência” no Rio de Janeiro (2001-2011). Rio de Janeiro: NECVU; BOOKLINK, 2013.
(5) MISSE, M. Sujeição criminal. In: LIMA, R. S., RATTON, J. L., AZEVEDO, R. G. (orgs.) Crime, polícia e justiça no Brasil. São Paulo: Contexto, 2014. p. 204-12.
(6) COIMBRA, C.. Violência do Estado e violência “doméstica”: o que têm em comum? In: RAUTER, C., PASSOS, E., BARROS, R. B. (Org.). Clínica e Política: subjetividade e violação dos direitos humanos. Rio de Janeiro: Instituto Franco Basaglia Editora Te Corá, 2002. p. 77-88.
(7) IBOPE INTELIGÊNCIA. Pesquisa sobre violência/segurança. Disponível em http://www.ibopeinteligencia.com/arquivos/JOB_0104_BRASIL%20-%20Relat%C3%B3rio%20de%20tabelas%20(justi%C3%A7a).pdf.
(8) ELIAS, N. Os alemães: a luta pelo poder e a evolução do habitus nos séculos XIX e XX. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 1997.
(9) MUNIZ, J., PROENÇA JUNIOR, D. Mandato policial. In: LIMA, R. S., RATTON, J. L., AZEVEDO, R. G. (orgs.) Crime, polícia e justiça no Brasil. São Paulo: Contexto, 2014. p. 491-502
COMO CITAR ESTE ARTIGO| KOHARA, Paulo. 9 mortos no Paraíso, 38 anjos caídos – Sobre a “mitologia” da violência policial brasileira. Coluna Desha, 30 de dez. de 2019. Disponível em: <https://coluna.desha.com.br/9-mortos-no-paraiso-38-anjos-caidos-sobre-a-mitologia-da-violencia-policial-brasileira-paulo-kohara/>
Quem escreve

Paulo Kohara
Doutor em psicologia pela USP, com estágio doutoral na Université Sorbonne Paris-Cité - Université Paris XIII. Psicólogo na Defensoria Pública do Estado de São Paulo. Membro do Grupo de Pesquisa em Direitos Humanos, Democracia, Política e Memória do Instituto de Estudos Avançados (IEA-USP).