Myrna Coelho traz para a Coluna Desha desta semana um texto contundente sobre o que chama de demolição da infância, um processo que se dá por diferentes formas e níveis de discurso que tem como alvo sobretudo a mulher na sua condição de mãe, desde a gestação, ao transpor uma experiência absolutamente particular para o âmbito social, fazendo da gestante um fenômeno de interesse público, passando pelo parto, cientificamente idealizado, e pelas falácias da amamentação. Tudo isso tem como resultado o desmantelamento não só da relação mãe e filho, mas da própria relação da mulher que gera e do futuro adulto consigo mesmos.
No artigo anterior problematizamos o conceito de demolição da infância como um dispositivo por excelência do biopoder. Entende-se aqui como “biopoder” os dispositivos formados por subprodutos e discursos derivados das técnicas que buscam subjugar e controlar os corpos como espécie, como nos ensina Foucault. A partir de premissas de saúde pública, são estabelecidos discursos sobre saúde individual, aparência, alimentação, gestação e puerpério que se pretendem discursos de verdade para tornar esses corpos dóceis ao capital.
Discutimos também que a infância é um alvo especial do mundo-capital por suas características de:
- abertura, a criança está aberta e curiosa para conhecer o mundo e as emoções; a relação da criança com o mundo e com os adultos é assimétrica, e ela procura absorver tudo a sua volta;
- crítica, pois a criança tem como vocação o questionamento dos fundamentos do status quo; para tanto, lembremos das metamorfoses de Friedrich Nietzsche em seu Zaratustra: o camelo que acumula e suporta as cargas; o leão que passa a questionar e enfrentar as verdades e dogmas; e a criança que tem a vocação da criação dos novos valores.
- expansão e por toda potência que envolve esse momento da vida: a vitalidade, o desejo de participar do mundo de maneira inocente. Sabemos, dependendo do tempo e do lugar, como as instituições religiosas cobiçam deter o controle do tirocínio e também como há estratégias de publicidade e marketing para que as crianças se tornem consumidores precoces.
No presente artigo, problematizaremos como os discursos sobre a maternidade precedem e impulsionam a demolição da infância.
Comentaremos especificamente aspectos fundamentais que envolvem a gravidez e o puerpério e como os dispositivos que operam o controle das mentes e dos corpos das mulheres nesse período propõe-se a, para além da dominação e da subjugação da mulher, iniciar o processo de demolição do bebê e a ascensão do projeto de dominação do “indivíduo-consumidor-laborador”.
A Gestação
Sabemos que no imaginário brasileiro (ou nas culturas consumo-orientadas) comumente nega-se aspectos reais da maternidade num discurso idealizado que subjuga as mulheres. “Idealizado” porque se funda numa projeção sobre “como deveria ser” e, para tanto, oferece um sem-número de receitas e metas, advertências e referências, todas arranjadas de modo que a mulher sinta-se permanente em dívida para consigo, para com o bebê, para com o mundo por não bater as metas preceituadas. Ou então, que ela seja levada a terceirizar os meios (com remédios e intervenções alheias) para atingir essas metas pois, como sabemos, a insegurança e a desconexão individuais movimentam a economia.
O primeiro aspecto a ser levantado aqui trata da decisão de ter ou não ter um filho. O fato de que essa questão está mais presente na vida das mulheres que dos homens já revela muito do que vem pela frente: à mulher restará carregar os ônus do abandono (emocional, econômico e político) por se propor, ou não, a perpetuar a espécie. Questão coletiva, é tratada pelo nosso momento histórico como algo do âmbito privado em suas dificuldades, e algo do âmbito público em sua gestão biopolítica. Ou seja: na mesma medida em que se diz que a decisão é da mulher, judicializa-se o aborto, proliferam-se discursos sobre o quanto uma mulher será mais mulher ao se dobrar ao desejo da sociedade de que ela se torne mãe e, desta forma, se submeta ainda mais ao patriarcado/capital. A maternidade é um acontecimento de extrema fragilidade e extrema potência. A união desses dois fenômenos é a chave para a destruição do patriarcado e para a construção de outras possibilidades de nos relacionarmos conosco e com o mundo. É a chave para a produção de outras masculinidades e feminilidades e, consequentemente, de outra relação com os chamados do mundo-capital. Ou seja: temos aqui um alvo por excelência para a opressão e dominação da humanidade.
Não abrimos espaços de discussão decentes sobre a decisão de ter ou não filhos, minimizando essa questão biopolítica como se fosse algo do âmbito privado. Dessa forma, muitas pessoas acabam decidindo ter filhos por conta de seus sintomas, e não de fato por conta de seus desejos. Isso implica que a criança que chegará ao mundo já carregará uma carga de demolição transgeracional extra, tendo que resolver, antes mesmo de suas próprias questões existenciais, as que seus pais não resolveram e escolheram “passar para frente” através dessa “transferência de neurose”. Isso sempre acontece. Mas, quanto mais “no escuro” os pais estão, mais “no escuro” a criança nascerá e mais trabalho ela terá para produzir conexões emancipadoras, porque quanto mais “no escuro”, maior a incidência da demolição.
O “escuro”, aqui, é uma alusão ao pensamento crítico tal como a “Alegoria da Caverna”, de Platão, em sua República.
As fantasias que envolvem a gestação iniciam com um convite à mulher: “agora, tudo o que você faz, sente, pensa, fantasia, evita, deseja… Tudo o que te atravessa será reportado a ti como culpa por conta desse corpo que te habita e que – neste país – é corpo do Estado, do capital, e não seu”. Esse “bebê-coisa-pública” será gerido de forma – na maioria das vezes – silenciosa, através de olhares de julgamento e, claro, de reprovação. Isso é bem importante, porque garante o principal: que a mulher sinta-se insegura e, portanto, desconectada de si, de sua intuição e de sua sabedoria feminina ancestral. Em alguns momentos, esses julgamentos se tornarão menos silenciosos. Eles podem aparecer como comentários do senso comum, quando há assédio ao fluxo dos afetos, na forma de comentários como “se estás com medo ou insegurança, o bebê se sentirá rejeitado”. Também podem aparecer como dispositivos biopolíticos, quando desde as maternidades já é apresentado um comércio de testes e imunizações muito além das indicações da OMS; afinal, como se diz, “excesso de cuidado não deve fazer mal e é um pacto coletivo pelo bem-estar da comunidade”.
É importante salientarmos que esses olhares julgadores de reprovação nunca falam do que olham mas, sim, de onde olham. Ou seja, o julgamento e a reprovação vão dizer da própria experiência negativa com a maternidade, eles assinalam a intensidade da demolição marcada na vida do julgador.

A gravidez é um período extremamente intenso na vida da mulher e de sua família (quando essa existe). A transição para a maternidade é tensa, complexa, profunda e difícil. Mas nossa sociedade consegue fazer com que isso seja ainda pior. A tensão absoluta que recai sobre esse acontecimento o inventa como antinatural ao ensejar intervenções artificiais e alienígenas ao corpo da mulher e ao do bebê, deslocando a soberania de si e dos eixos decisórios para terceiros, e isso não é à toa. Como bem sabemos, intervenção sempre chama mais intervenção, elas nunca se esgotam.
Queremos salientar o proibicionismo que recai sobre as grávidas. Os discursos proibicionistas sobre alimentos, bebidas, drogas ou movimentações só geram culpa e mais tensão desnecessária. É tanta culpa individual, é tanta pressão, que desconecta o nosso saber sobre um acontecimento natural, tornando-o portador de uma tensão absoluta. A transição para a maternidade é um momento em que as mulheres entendem uma face do machismo bem específica: o feto-futuro-bebê é um dispositivo que será usado para sempre contra sua mãe.
Essa contraposição garante a segunda inserção da demolição da infância: separa-se o feto da mãe ainda quando ele é um vir-a-ser bebê. Inscreve-se, assim, um pacto de inimigos nessa dupla: a criança carregará para sempre, e explicitará para todo o mundo, todas as falhas e incompetência da mãe, e essa carga é amiúde chamada farsescamente de “simbiose”.
No nosso mundo, o bebê é sempre olhado como o resultado das falhas da mãe, ou do acerto da “natureza”, disjuntivamente. Falando francamente: o pai, para quem o aborto é legalizado, não entra nessa conta; e, na melhor das hipóteses, quando fazem o mínimo, aparecem como uma masculinidade contemporânea “cirandeira”, merecedores de medalhas, honrarias e aplausos.
O Parto
O parto é outro drama onde se constitui o terceiro dispositivo de demolição da infância. Não tratamos o parto como um acontecimento conectado à vida. Vamos lembrar que os saberes ditos “científicos” decidiram apropriar-se dos corpos, especialmente das mulheres e das crianças, para se inventarem como “ciência baseada em evidências”, mais uma dessas expressões que pela enésima vez procuram cacifar-se retoricamante, mas que nada significam. Dizem que a primeira intervenção que inventou o parto como coisa médica e o desconectou do mundo dos saberes ancestrais das mulheres foi a solicitação da posição deitada para a parturiente. Não é necessário pensar muito para entender que, nessa posição, a gravidade não ajuda e, portanto, são necessárias novas intervenções.
“Seu quadril é pequeno; você não dilata; a dor do parto é a pior do mundo; o bebê está sentado; tem prolapso de cordão; mecônio…”. Haja história para dizer a mesma coisa: “mulher, você não é capaz de parir seu filho”. Sim, de todos os mamíferos desse planeta, somos a única espécie – porque se é mulher – que não dá conta de fazer o que deve ser feito. E para que não se esqueça disso, essa “verdade” é marcada em nossos corpos individuais e políticos.
A tomada do parto como acontecimento distante da vida desconecta a passagem de uma rede de saberes ancestrais e resistentes das mulheres para as crianças. Esse projeto demole em dois níveis: primeiramente, impede o acesso do bebê à uma transição humana, delicada e importantíssima para a chegada ao mundo vivido via trabalho de parto (e nem precisa ser num parto vaginal, necessariamente). Desconecta-o de sua natureza, abrindo caminho para uma sensação de ter sido sequestrado. Na sequência, inscreve o início da vida numa relação mecânica e tecnocrática, impedindo sua transição marcada pela temporalidade da natureza, e não da agenda dos negócios. Impedindo a golden hour, demolimos o bebê, mãe, pai, irmãos e comunidade numa tacada só. É uma ótima estratégia para desconectar essa primeira rede de proteção e interação, inserindo dúvidas em canais de comunicação tão tênues e profundos.
A Amamentação
A amamentação é a próxima vítima para o quarto demolir da criança. Promovendo discursos sabidamente mentirosos, como: o leite não desceu; secou, não há leite suficiente; bebê não ganha peso; o prematuro precisa de complemento, etc. Não apenas a mulher é novamente demolida e fragilizada, mas o bebê ganha status biopolítico como entidade em si, impedido da transição afetiva e acolhedora pactuada pela sua mãe. Ao invés disso, apresenta-se uma solução quimicamente eficaz que garantirá que os supostos erros cometidos pela mãe não interpelem a nova criatura. A responsabilidade é terceirizada por um mediador que está disponível a auxiliar e ter lucro. Separando-se a criatura dos criadores, ela ficará imune às suas sombras. Ledo engano! A indústria da “fórmula” e de toda alimentação infantil consegue transformar algo básico em questão de saúde e de sobrevivência. E o mais importante é que essa experiência é o fundamento para desconectar o bebê de uma relação óbvia e saudável com a sua alimentação.
Demolindo esse aspecto da sua percepção e da sua intuição, temos mais uma abertura para a desconexão de si mesmo.
Só esses quatro grandes acontecimentos já explicam bastante sobre as crianças e adultos que chegam em nossa clínica distantes de si mesmos.
Todo nosso funcionamento como “sociedade tecnocrática espetacular” está vinculado a um projeto não-dito e/ou mal-dito de desqualificação dos saberes ancestrais, afetivos e conectados para promover um saber nomeado neutro, mas que, na verdade, nomeia-se capital. No Brasil, adoece-se de pobreza, e não de doença. Adoece-se de desigualdade e, mais recentemente, de ódio.
As crianças chegam ao mundo com seus corpos delicados e frágeis sofrendo tantas intervenções que se torna automática sua submissão, ainda que em seus primeiros anos elas possam clamar pelo contrário, até enfrentarem o que é chamado de educação, um sistema de demolição ainda mais complexo, que tratarei na próxima oportunidade.
COMO CITAR ESTE ARTIGO | COELHO, Myrna. A demolição da infância começa na idealização da maternidade: gravidez, puerpério e biopolítica do bebê. Coluna Desha, 02 de dez. de 2019. Disponível em: < http://coluna.desha.com.br/a-demolicao-da-infancia-comeca-na-idealizacao-da-maternidade:-gravidez,-puerperio-e-biopolitica-do-bebe-|-myrna-coelho/>
Quem escreve

Myrna Coelho
Profa. Dra. Myrna Coelho, psicóloga clínica, cofundadora do curso “Fenomenologia Crítica: ações clínicas, educacionais e institucionais”, do Instituto Sedes Sapientiae. Decidiu recomeçar a vida do outro lado do oceano, onde segue atendendo seus pacientes e dando supervisão on-line. Atualmente pesquisa psicoterapia on-line.