“O coração tem razões que a própria razão desconhece”.
Blaise Pascal
Uma das mais antigas representações do coração é da data de 1.200 a.C, um vaso da cultura olmeca, do México que tinha o formato de coração, com os três vasos originando-se em sua base, tornando assim, o coração um dos símbolos universais que mais se conhece. (Figura 1)

Quando falamos de representação simbólica estamos nos referindo a uma expressão singular, através das experiências e vivências de um indivíduo, considerando ao mesmo tempo, sua subjetividade e o contexto sociocultural em que ele se encontra inserido. As representações simbólicas do coração são diversas a partir dos contextos histórico-sociais, isto é, existe o coração dos apaixonados, dos artistas e o coração dos cardiologistas.
O coração tem sido considerado há séculos fonte da vida a partir de duas concepções, uma anatômica – o coração órgão muscular do sistema cardiovascular e outra simbólica, o coração associado às emoções e ao pensamento.
É inerente ao ser humano inserido na cultura criar representações que vão expressar sua visão do mundo, partindo da premissa que o homem é o único animal capaz de criar símbolos, sendo esses a própria linguagem, mais ainda aquilo que evoca, representa, substituindo algo abstrato ou ausente. Cada cultura e/ou sociedade compõe seus códigos simbólicos que representam o amor, a dor, a perda, o corpo, a saúde e a doença.
Os estudos rigorosos e descobertas do médico inglês William Harvery (1578-1657) transformou o coração numa “bomba biomecânica”, responsável pelo sistema circulatório, imbuído de uma responsabilidade vital no esquema fisiológico e esvaziado de conteúdo psicológico ou moral, como ainda hoje a ciência o define, nos indagando: O coração do cardiopata na sociedade contemporânea estabelece um (RE) Encontro da anatomia com o simbólico?
Segundo a filósofa americana Susan Sontag (1984), à cardiopatia apesar dos riscos de morte envolvidos, não há pudores ou vergonha em relação à doença, isto é, o cardiopata não precisa mentir sobre seu infarto cardíaco, há aqueles que até se gabam do número de safenas que fizeram, diferentemente de outras doenças como o Câncer e a Aids que ainda são carregadas de tabus na sociedade ocidental, ainda que não exista tabu em relação a doença cardíaca, o indivíduo acometido é claramente impactado pela tradicional carga simbólica associada ao órgão coração.
Questionamentos sobre as possíveis interferências da cirurgia cardíaca na personalidade e nas emoções ainda se faz presente nos tempos atuais: “Depois da cirurgia, estou mais emotivo!”, “Será que voltarei ser o mesmo?”, “Ficarei mais sensível e choroso?” e “Estou me sentindo estranho depois do infarto, mais pensativo, sei lá.”
O impacto psicológico ocasionado pela doença cardíaca tem relação com o aflorar das representações subjetivas e singulares relacionadas ao órgão, isto é, se o coração é visto como centro da vida, sofrer de uma doença cardíaca é como ter, a partir de agora, uma vida limitada, “estragada” que pode não servir para mais nada, ou seja, podem surgir sentimentos: de impotência, menos valia, culpabilidade, angústias, medo, dentre outros.
Dessa forma, há uma enorme diferença entre a tarefa do cuidado do órgão enquanto anatomia fisiológica e do cuidado do ponto de vista psicológico do paciente que sofre de uma doença cardíaca, como é o caso do infarto, pois na perspectiva psicológica envolve todas as representações do coração presentes na vida e na cultura do paciente, repercutindo no processo de adaptação e evolução clínica do paciente, bem como, de seus familiares.
As doenças cardiovasculares (DCV) continuam sendo a principal causa de morte no Brasil e no mundo, sendo a terceira maior causa de internações no país antes do período pandêmico e determinando ainda, o aumento da morbidade e incapacidade ajustadas pelos anos de vida e consequentemente gerando um impacto significativo na qualidade de vida do indivíduo acometido pela DCV.
Segundo o ministério da saúde, o infarto do miocárdio ou popularmente conhecido como ataque cardíaco, é a morte das células de uma região do músculo do coração por conta da formação de coágulo que interrompe o fluxo sanguíneo de forma súbita e intensa, isto é, a principal causa do infarto é a aterosclerose, classificada como o acúmulo de placas de gordura no interior das artérias coronárias, formando uma obstrução. Em sua predominância o infarto ocorre quando há o rompimento de uma dessas placas, ocasionado a formação do coágulo e a interrupção do fluxo sanguíneo.
Existem vários fatores responsáveis para o desencadear das doenças cardiovasculares, fatores hereditários que dizem respeito a herança genética/histórico familiar; fatores comportamentais, tais como: sedentarismo, tabagismo, maus hábitos alimentares, os fatores emocionais e os estados depressivos, ansiosos e estresse, que tem influências sobre as doenças cardíacas.
Considerando que determinados padrões de comportamentos podem estar atrelados ao traço e/ou característica de personalidade do sujeito, a psicologia há mais de duas décadas vem realizando pesquisas que traçam os perfis psicológicos da população que possam contribuir ou estar relacionados à predisposição para o desenvolvimento das doenças cardíacas e os impactos psicológicos diante destas.
Os padrões de comportamento e o traço de personalidade apontados pela psicologia são dois tipos A e D, em relação ao padrão do tipo A as características evidenciadas são: impaciência, agressividade, ambição excessiva, competitividade elevada, imediatismo, estrutura egóica rígida, sintomas ansiosos e nível de estresse elevados, quanto a personalidade tipo D predominou-se os sentimentos de hostilidade, preocupações extremas, pessimismo, inibição social, afetividade negativa, introspecção, angústias e sintomas depressivos.
Grande parte dos pacientes cardiopatas desenvolve ou tem histórico pregresso de depressão, ansiedade e outros transtornos psíquicos importantes. No Olhar da psicossomática, isto é, na inter-relação entre o orgânico e o psíquico, observa-se que não apenas essas doenças influenciam o desencadear do sofrimento psíquico, mas também o sofrimento oriundo da psiquê pode contribuir para o desenvolvimento das doenças cardiovasculares.
Partindo desse pressuposto, a depressão pode ser considerada um sintoma manifesto tanto no antes quanto no depois do infarto, conforme os estudos têm apontado para a presença de sintomas depressivos (SD) após a vivência de um evento cardíaco, sendo ainda considerado um fator de risco no desencadear das doenças cardíacas, bem como, uma influência negativa no tratamento e prognóstico.
Diante de uma situação de sofrimento inédito como pode ser o IAM, o paciente muitas vezes se apresenta sem palavras para contar o que aconteceu com ele próprio, mostrando-se angustiado e experimentando um estranhamento típico daquele que se encontra esvaziado de saber e de sentindo.
Outro fator psíquico associado com frequência às doenças cardiovasculares é a ansiedade, sendo ainda muito presente a associação dos dois transtornos: ansiedade e depressão, grande parte dos estudos apontam que a ansiedade parece mais presente em doenças cardíacas como IAM e Arritmias, enquanto a depressão parece mais associada à Insuficiência Cardíaca (IC), contudo é bastante comum na prática clínica psicológica, observamos os dois transtornos coexistentes, tornando o risco cardiovascular potencialmente mais elevado.
A ansiedade ainda está relacionada à maior mortalidade cardíaca, principalmente nas ocorrências súbitas. Na visão freudiana a ansiedade pode ser considerada um sinal de alerta do ego frente a excessos libidinais, que por sua vez, são interpretados como perigo por estarem associados a conteúdos dolorosos ou traumáticos, também pode estar relacionada à angústia de castração, em que o objeto de amor pode ser perdido ou separado do sujeito, provocando sentimentos de desamparo.
O IAM enquanto acontecimento do corpo torna-se impactante psicologicamente podendo evocar uma série de manifestações emocionais, dentre elas a surpresa, a experiência de impotência e a constatação da finitude, exigindo um esforço/trabalho do psíquico necessário e importante para o enfrentamento e elaboração dessa nova condição atual que é o adoecimento que pode ainda ser entendido pela pessoa como um marco, no sentindo de uma cisão no percurso de sua vida, gerando um antes e um depois do acontecimento.
A doença provoca muitas mudanças na rotina de vida diária, na autonomia, nas relações sociais e afetivas, na produtividade e comumente vem acompanhada de perdas, a forma como cada indivíduo enfrenta as perdas, é peculiar e subjetiva, mas significativa para que possamos compreender a maneira como o paciente estabelece a relação com sua doença e as desditas inerentes a ela. Se estamos diante da perda essa automaticamente remete a um processo de elaboração do luto, exigindo do ego retirar a energia libidinal do objeto perdido e deslocá-lo para outro objeto, por via de novas representações e elos, dessa forma trata-se de um processo que carrega por si só um grande sofrimento psíquico.
Os pacientes diante de uma doença que pode afetar sua vida e suas relações, necessitaram rever seus conceitos e valores de forma a buscar se adaptar as tais exigências impostas pelo adoecimento, diante de todos os impactos, o cuidado que deve ser preconizado é aquele que compreende o ser humano como biopsicossocial e espiritual, cientificamente comprovado que quando há um desequilíbrio em uma das esferas do ser humano, consequentemente todas as outras esferas serão de alguma forma impactada.
Como foi possível observar são diversos fatores que corroboram para o impacto psicológico diante de um evento cardíaco como é o caso do Infarto Agudo do Miocárdio (IAM), tornando o trabalho do psicólogo nessa clínica bastante desafiador e em muitas circunstâncias de difícil manejo.
Portanto, não considerar o acompanhamento psíquico no tratamento com os pacientes cardiopatas ou em qualquer outro tratamento médico, especialmente quando nos referimos as doenças potencialmente graves e fatais, é desconsiderar a subjetividade do paciente, desintegrando-o do seu próprio adoecimento.
Referências Bibliográficas
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- Sontag, S. A doença como metáfora. 6ª ed. Rio de Janeiro: Graal; 1984.p.91-2.
Quem escreve

Sirlei Pereira Nunes
Psicóloga Hospitalar Atuante há 10 anos na área. Psicóloga Clínica em Consultório Particular nas modalidades on-line e presencial tanto para os atendimentos psicológicos, quanto para supervisão clínica e os encontros do grupo de estudos sobre luto na perspectiva da psicanálise. Docente - Atualmente em cursos de Pós-graduação em Psicologia Hospitalar e Psico-Oncologia. Diretora Científica do Departamento de Psicologia da Sociedade de Cardiologia do Estado de São Paulo (SOCESP) no Biênio 2012-2013. Especialista em Psicologia Hospitalar – InCor HCFMUSP; Especialista em Cuidados Paliativos pelo Instituto Longaeva; Doutoranda pelo InCor HCFMUSP.